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Política, relações sociais e cidadania, segundo Segatto

Lucília de Almeida Neves Delgado - Junho 2015
 

José Antonio Segatto. Política, relações sociais e cidadania. Brasília: Fundação Astrojildo Pereira; Rio de Janeiro: Contraponto, 2015. 223p.

O Brasil apresenta fortes diferenças regionais, alto índice de miscigenação étnica e efetiva multiplicidade cultural. Suas festas populares, como o carnaval, festas juninas, micaretas e celebrações religiosas, como o Círio de Nazaré, em Belém do Pará, e a lavagem da Igreja do Senhor do Bonfim, em Salvador, reúnem milhares de pessoas de diferentes classes sociais. As representações sobre essa marcante e singular realidade ultrapassam as fronteiras nacionais e, à primeira vista, parecem indicar ser o Brasil um país que incorpora diversidades, cultiva a tolerância, respeita a convivência entre os diferentes e tem uma população pouco aderente a preconceitos sociais.

Ledo engano. A história brasileira demonstra o contrário. O Brasil, embora tenha uma população bastante miscigenada, ainda é um país onde parte expressiva da população negra e de origem indígena tem acesso a poucas oportunidades. O fosso social é enorme, as diferenças entre classes sociais são visíveis, avassaladoras e a concentração de renda extraordinária. O modelo de cidadania que aqui predomina é restrito e excludente. Às suas características, marcadas por estruturais desigualdades e cultura elitista sedimentada, soma-se um forte pendor por práticas autoritárias. Esse tipo de prática contamina o mundo macro da política e o cotidiano das relações sociais, nas esferas pública e privada.

Essas marcas estruturais da realidade brasileira usualmente têm sido atualizadas nas conjunturas por movimentos de modernização conservadora. Ou seja, no desenrolar das conjunturas históricas, moderniza-se a superfície das realidades econômica, social e política do país, sem alterar, de forma efetiva, sua desigualdade nuclear.

Ao longo dos ensaios que integram esta publicação, o historiador José Antonio Segatto reafirma o caráter estrutural dessa desigualdade. Para melhor fundamentar esta conclusão, recorre a Gramsci que lhe fornece rico substrato teórico sobre as relações entre estruturas e conjunturas, tal como registrado.

Sinto-me feliz em prefaciar este seu novo livro, pois é uma bela e consistente contribuição para estudos e pesquisas sobre os dilemas da trajetória de construção e desconstrução da cidadania no Brasil.

Composto por um conjunto de ensaios escritos em momentos diferentes de sua vida acadêmica, poderia ser somente uma compilação de reflexões diversas e desarticuladas acerca da temática da democracia e da cidadania. Mas seu livro, ao contrário, apresenta coerência, unidade e articulação analítica. Toma como tese central, segundo palavras do próprio autor, a "problemática histórica da restrição dos direitos civis, políticos e sociais no Brasil e as tentativas, nem sempre frutíferas, de ampliá-los".

Em uma redação que prima pela clareza, Segatto apresenta uma bela síntese histórica sobre o tema central do livro. Em tempos em que predominam estudos monográficos e pesquisas sobre questões pontuais, a escrita de sínteses, orientadas por análises inter-relacionais, torna-se cada vez mais rara. Na contramão da tendência minimalista ou pontual, hoje hegemônica, o autor também estabelece um fértil diálogo com as bibliografias clássica e contemporânea sobre cidadania, democracia, sociedade e política e realiza uma incursão temporal pormenorizada que percorre a História do Brasil, do período imperial à conjuntura do tempo presente. Nessa viagem temática, o caráter excludente e elitista da sociedade e da prática política brasileira é demonstrado em diferentes contextos como os das transições políticas realizadas pelo alto, quando da Proclamação da República (1889), Revolução de 1930, transição de 1945 e golpe civil/militar de 1964.

No conjunto de sua interpretação são também considerados, além de outras realidades e processos:

* leis que restringem a prática sólida e permanente da democracia no Brasil;

* tempos de vigência de regimes autoritários como o do Estado Novo (1935-1945) e o da ditadura (1964-1985);

* temor atávico, por parte de expressivos e influentes segmentos das elites públicas e privadas brasileiras, no que se refere às potenciais ampliações da participação popular e dos direitos de inclusão social;

* construção de pactos conciliatórios que, inúmeras vezes, contribuem para limitar iniciativas democráticas de participação cidadã;

* repressões às iniciativas populares de luta por inclusão política e social, em diferentes conjunturas da história política brasileira;

* adoção de práticas políticas clientelistas e patrimonialistas que possibilitam a apropriação do espaço público por interesses privados;

* estrutura centralizada da propriedade da terra no Brasil;

* longa perseguição e repressão às organizações e partidos de esquerda;

* limitação dos direitos sociais.

A escrita de Segatto, todavia, não se orienta exclusivamente por um pessimismo sem esperança que desconhece as lutas históricas e as conquistas dos movimentos sociais no Brasil. Ao contrário, considera os efetivos esforços da população brasileira em seus embates por reconhecimento político e conquistas de direitos sociais. As revoltas e mobilizações dessa população embora, na maior parte das vezes, reprimidas - assim aconteceu com Canudos, Contestado, Revolta da Vacina e Ligas Camponesas, deram visibilidade às insatisfações populares e, muitas vezes, redundaram em conquistas efetivas. Os melhores exemplos dessas conquistas são a Consolidação das Leis do Trabalho e o Estatuto do Trabalhador Rural. A CLT, de 1943, embora restritiva no capítulo destinado aos direitos coletivos, muito avançou nos quesitos referentes à proteção do trabalhador urbano. O Estatuto do Trabalhador Rural (1962) introduziu importantes direitos de proteção ao trabalho para camponeses que vivem na zona rural brasileira.

Mas, com certeza, o texto de maior originalidade do atual livro de José Antonio Segatto encontra-se no Capítulo III, "Cidadania de ficção". O sentido deste título é duplo e criativo. Refere-se à "ficcional" realidade cidadã ao longo da trajetória histórica do Brasil. Simultaneamente dialoga com autores da literatura brasileira que, nos enredos e narrativas de seus romances e livros de memória, retratam práticas cotidianas de exclusão política e social, peculiares à vida urbana e rural do Brasil.

Entre os autores eleitos por Segatto para o diálogo da História, Sociologia e Ciência Política com a Literatura, destacam-se Graciliano Ramos, Pedro Nava, João Ubaldo Ribeiro, Lima Barreto, Mário Palmério, Machado de Assis, João Cabral de Melo Neto e Manuel Antônio de Almeida.

Os textos finais do livro são inteiramente dedicados a analisar a inserção do Partido Comunista Brasileiro na História do Brasil. Como conhecedor exemplar da história do PCB, Segatto apresenta sólida contribuição sobre a trajetória dos comunistas brasileiros, sua integração no movimento comunista internacional e suas lutas pela ampliação da democracia e da cidadania no Brasil Republicano.

Pelas razões expostas, tenho convicção que José Antônio Segatto contempla o leitor com ensaios relevantes, consistentes e fortemente embasados em sólida interlocução com expressiva bibliografia histórica e teórica. Um livro ancorado em sua robusta trajetória acadêmica, escrito com fluência, objetividade e profundo conhecimento das complexidades inerentes ao tema da cidadania.

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Lucilia de Almeida Neves Delgado é historiadora e nos últimos dois anos tem também se dedicado à pintura de telas. Trabalha com técnicas mistas, com predominância de acrílico sobre telas.



Fonte: Especial para Gramsci e o Brasil.

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