O blecaute de 12 horas, em 8 de março de 1991, provocou o maior acidente industrial da Amazônia, o único com repercussão mundial. Sem energia, os 864 fornos da Albrás, a 8ª maior fábrica de alumÃnio do mundo, instalada em Barcarena, a menos de 50 quilômetros de Belém, com investimento de 1,3 bilhão de dólares, quase foram completamente perdidos. Poucas usinas desse metal se viram em situação tão dramática. Mas essa história, uma das mais importantes dos "grandes projetos", que entraram em atividade a partir do final da década de 70 do século passado, para integrar (amarrar é a expressão correta) a Amazônia ao Brasil e ao mercado internacional, é pouco conhecida. Lamentavelmente, as fontes de referência sobre esse grave episódio são raras entre nós.
Por isso, rememoro a história, 17 anos depois. E cito o artigo que publiquei em A ProvÃncia do Pará de 21 de março, menos de duas semanas depois do acidente na linha de transmissão de energia da hidrelétrica de Tucuruà para a Albrás, com mais de 300 quilômetros de extensão. Nesse artigo, fiz o primeiro desmentido à nota oficial através da qual a Eletronorte comunicou à opinião pública que um raio causara a interrupção na transmissão de energia, que afetou quatro milhões de pessoas. Quase um mês depois é que eu voltaria ao tema do falso raio, com informações completas sobre a verdadeira história da queda de um dos cabos de uma das torres da linha singular, que supria as necessidades da fábrica, responsável então por quase 3% de todo consumo de energia do Brasil.
A primeira referência ao erro de incorporação da peça na torre me foi passada por um amigo, engenheiro que prestava serviços à Eletronorte, em prosaica conversa de fim-de-semana à beira de uma piscina. Pessoa séria e intimorata, não se inibiu - como a maioria dos personagens, então e até hoje - em me falar tudo que sabia sobre o acidente. A partir daÃ, circulei por várias fontes dentro da Eletronorte, na Albrás, no governo e fora dele, até reunir informações suficientes para escrever o artigo do dia 21 de março, sob o provocador tÃtulo "A linha é segura?".
Embora a princÃpio ninguém se apresentasse para comentários oficiais, pouco depois recebi cópia xerox do meu texto, enviado por uma das minhas fontes em "off". À margem do recorte havia a seguinte anotação: DISK - Creio que assim se esclarece que não chamamos os americanos por não confiarmos em nós mesmos e nos japoneses. Como o Lúcio Flávio é um jornalista sério, o convidamos a visitar a Albrás e demos amplas explicações, e creio que agora melhorou. Abraços, Gazolla".
O presidente da Albrás, Guilherme Gazzola (de outra famÃlia mineira presente na história da Companhia Vale do Rio Doce), não esteve entre minhas fontes para as primeiras matérias que escrevi sobre o acidente. Mas como já nos conhecÃamos, ele achou melhor que tivéssemos um contato direto e fez o convite. Na visita, respondeu a todas as perguntas que lhe fiz, permitindo-me percorrer a fábrica, ainda em plena obra de recuperação, sem qualquer embaraço. Quando as partes que atuam num acontecimento são sérias, todos ganham, mesmo quando o fato possa causar embaraços e esteja fora do controle dos atores principais. Assim é a vida. E assim devia ser o jornalismo, destituÃdo de qualquer adjetivo acompanhante, mas pleno de informações relevantes e checadas.
Este foi o artigo:
A Eletronorte está fazendo uma revisão completa na linha de transmissão de energia da hidrelétrica de Tucuruà a Vila do Conde. É para verificar os riscos de repetição do acidente ocorrido no dia 8, que provocou um blecaute de 12 horas numa região que abriga quase quatro milhões de habitantes e tem o principal consumidor de energia do Estado, a fábrica de alumÃnio da Albrás. cujas necessidades representam quase 3% da demanda nacional de energia. Na próxima semana a revisão será concluÃda e a Eletronorte saberá se será ou não necessário substituir as mais de três mil peças de sustentação dos cabos de energia.
Já está comprovado que o acidente foi causado pelo rompimento dessa peça metálica por fadiga mecânica. Exames de laboratório, também em curso, atestarão se foi uma fadiga natural ou se ela decorreu de uma falha no recebimento da peça, que não atendia as especificações técnicas da própria Eletronorte. A empresa exigia cabos de sustentação em ferro forjado e teria incorporado peças em ferro fundido, menos resistentes às condições ambientais da Amazônia.
Também parece comprovado que o blecaute teria sido menos demorado se o sistema de rastreamento instalado na linha de transmissão estivesse funcionando. O sistema, que indica no painel de controle a localização de qualquer anomalia na linha, estava fora do ar. Por isso, técnicos da Eletronorte na estação de Vila do Conde, desorientados, perderam muito tempo tentando restabelecer a energia através de partidas de emergência no reator da estação. Só depois de duas tentativas malogradas chegaram à conclusão de que a causa do problema estava na linha e não na estação. Apenas a partir desse momento, passadas duas horas do acidente, é que a turma de manutenção saiu de TucuruÃ, realizando o serviço em condições inteiramente adversas.
Um blecaute tão prolongado, de detecção problemática e de superação acidentada, como o do dia 8, parece ter surpreendido tanto a Eletronorte quanto a Albrás, por essa combinação de agravantes. A última inspeção na linha feita rigorosamente dentro dos padrões técnicos teria sido em 1984, segundo algumas fontes, ou em 1989, de acordo com outras. De qualquer maneira, nos últimos anos vinha diminuindo o rigor nesse serviço, fato debitado às crescentes dificuldades de caixa da Eletronorte. Já a Albrás, em cinco anos e meio de operação comercial, enfrentara quatro interrupções no suprimento de energia, uma delas programada e a mais extensa, com duração de menos de três horas.
Todo empregado que entra na Albrás aprende logo que blecaute acima de seis horas pode levar à perda total dos fornos. Quando a fábrica voltou a ter energia, 12 horas depois da interrupção, a principal luta era para evitar a concretização da principal ameaça. Esse risco já foi totalmente afastado, mas a partir daà todas as graves questões provocadas pelo acidente são especulativas. Somente na próxima semana a empresa estabelecerá um entendimento sobre a dimensão do prejuÃzo, a amplitude da cobertura do seguro, o prazo para a retomada da produção normal e a extensão dos sanos que sofreu.
Até lá, nenhum dos seus dirigentes aceitará falar em números. Ontem, 40% dos 864 fornos das quatro reduções já estavam acesos, uma façanha que ainda não assegura, entretanto, que eles continuarão ativos, nem permite prever quando sua produção chegará aos nÃveis normais. Da reativação até o pleno funcionamento há um longo percurso, que os 1.500 homens da fábrica estão percorrendo quase solitariamente. O acidente da Albrás deverá se caracterizar como um dos mais graves que uma indústria de alumÃnio já sofreu em todo o mundo em conseqüência da falta de energia.
Sem dispor de uma literatura técnica satisfatória sobre o problema, a direção da Albrás recorreu à experiência de uma empresa americana, a Almax. No ano passado, a fábrica dessa indústria, na Carolina do Sul, ficou três dias sem energia porque um furacão deixou inoperante a linha de transmissão, que é duplicada. Os técnicos da Almax experimentaram uma partida diferente da inicialmente adotada na Albrás, fazendo-a a frio e não a quente, depois de uma completa "hibernação" dos fornos, o que em Vila do Conde não foi inteiramente aceito. A opção dos norte-americanos teria sido motivada pelas caracterÃsticas de sua fábrica, uma unidade antiga que, inevitavelmente, iria trocar os fornos, mas a Albrás decidiu aproveitar a experiência deles, incorporando-a aos conhecimentos que foram adquiridos depois do blecaute e à orientação tecnológica dos japoneses. "Qualquer fábrica que parar nas mesmas circunstâncias vai agora precisar recorrer a nós", garante um engenheiro da Albrás, analisando o desempenho de 12 dias. "Vencemos o principal desafio, que foi evitar a perda completa dos fornos".
Até ontem, 96 fornos estavam desligados e só voltarão à atividade depois de extensas obras de recuperação. É pouco mais de 10% do total. Como, com o passar dos dias, a reativação será mais problemática, pode-se prever que as perdas deverão ir além de 30%. A volta da produção poderá começar em dois meses, até que a fábrica possa produzir nove mil toneladas diárias de alumÃnio com teor acima de 99,8%, a pureza padrão da Albrás.
A empresa alega que só poderá falar sobre números a partir da próxima semana, mas há uma previsão informal e otimista de que o seguro irá até 130 milhões de dólares e que o prejuÃzo não ultrapassará esse nÃvel de cobertura, ao menos num montante que passe a ser insuportável. Teoricamente, a Albrás estaria perdendo US$ 1,5 milhão ao dia apenas por falta de produção, mas o prejuÃzo seria na verdade bem menor porque a paralisação implica em gastos menores. Por enquanto, é possÃvel recuar desses números ou ir muito além, conforme as perspectivas de análise forem otimistas ou pessimistas. Mas a grandeza da questão transcende essas incertezas.
Até antes do acidente a Albrás estava girando US$ 50 milhões ao mês, pagando US$ 7 milhões de energia e US$ 2 milhões de folha de pessoal, sem incluir encargos. Com seu imposto, transformou Barcarena no segundo municÃpio em recolhimento de ICMS do Estado. É motivo mais do que suficiente para que os paraenses se interessem - e muito vivamente - pelo que está acontecendo a menos de 50 quilômetros de Belém. Em Londres, a repercussão tem sido maior e isso também tornou-se comum na Amazônia, que anda a reboque na sua própria história.
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Lúcio Flávio Pinto é o editor do Jornal Pessoal, de Belém, e autor, entre outros, de O jornalismo na linha de tiro (2006) e Contra o poder. 20 anos de Jornal Pessoal: uma paixão amazônica (2007).