No mês passado, duas entidades patronais da agropecuária paraense premiaram a Agro Santa Bárbara, do banqueiro Daniel Dantas. A Federação da Agricultura e Pecuária do Pará concedeu-lhe o mérito agropecuário e a Associação Rural da Pecuária o tÃtulo de pecuarista do ano. As honrarias surgiram na contramão da execração nacional ao dono da Santa Bárbara e do banco Opportunity, envolvido em numerosos crimes de colarinho branco, além de trapalhadas polÃticas.
Mas, se o baiano Daniel Dantas se amoldava como luva ao papel de vilão financeiro do Brasil e um dos homens públicos mais poderosos do paÃs, graças, em grande medida, a essa vilania desenfreada, no Pará ele se tornou merecedor do reconhecimento das chamadas entidades de classe. A Faepa e a ARPP arrolaram, entre as razões para as homenagens prestadas a Dantas, o fato de a Agro Santa Bárbara ser "a maior criadora de bovinos do mundo", mantendo 523 mil cabeças em 500 mil hectares de pastos distribuÃdos em 15 dos 143 municÃpios paraenses. No ano passado esse rebanho rendeu um abate de 110 mil bois.
Além disso, a empresa planta cana em áreas degradadas, maneja matas, nativas produz energia verde, faz reflorestamento e organiza loteamentos imobiliários, segundo o anúncio de página inteira das premiações. Para desenvolver projetos de alta tecnologia, é ela que mais faz inseminação artificial no mundo, cobrindo 42 mil fêmeas. Já investiu 1,5 bilhão de reais nesses negócios, que criaram 12 mil empregos diretos e 60 mil indiretos. Mantém 1,6 mil funcionários com carteira assinada e possui relação com 493 fornecedores, todos da região.
Exibidos em anúncio destacado na imprensa, esses números devem ter surpreendido os que o leram nos jornais de Belém. Até então, a Santa Bárbara era apenas motivo de murmúrios, embora eles viessem se intensificando. Os "bem informados" garantiam que era lavagem de dinheiro para o grupo Opportunity, que gastava a rodo, ou que materializava a associação de Dantas com Lulinha, o filho em maior evidência do presidente Lula.
Ninguém podia indicar onde estavam as fazendas que, somadas, resultavam em meio milhão de hectares de pastos e mais de meio milhão de cabeças de gado (além do mais, numa relação - de um animal para um hectare de pasto - desaconselhável nos frágeis solos da terra-firme do Pará). Mesmo assim, passou a ser comum para um viajante pelas estradas do sul do Estado, ao defrontar-se com uma propriedade, receber a informação de que ela era de Dantas ou de Lulinha. Provas do domÃnio, entretanto, ninguém tinha.
Agora não há mais dúvida sobre uma delas, somando quase 10 mil hectares, em Xinguara. Daniel Dantas comprou-a do fazendeiro Benedito Mutran Filho, em 2005. Mas, um dia depois que as duas associações de fazendeiros exaltavam as excelências dos imóveis e premiavam seu dono, o Estado e o Instituto de Terras do Pará ajuizavam na comarca de Redenção uma ação civil pública para reaver essas áreas. Alegaram que houve fraude e ilegalidade na transferência do patrimônio estadual ao particular.
Segundo a ação, o ato de resgate dos três aforamentos, remembrados para formar um único imóvel, concedidos pelo governo, entre 1959 e 1960, foi ilegal. A dois dias do fim do mandato do governo de Simão Jatene, a então presidente do Iterpa assinou o termo de resgate da fazenda EspÃrito Santo, constituÃda com base em dois aforamentos concedidos a Alberto Moussalem e outro a Marcolina de Seixas Rodrigues, com área de quase 10 mil hectares (sem incluir mais quatro mil hectares de excedentes de terra apurados durante a demarcação do terreno). Através desse ato, Benedito Mutran Filho, que era apenas detentor do domÃnio útil do imóvel, passaria a ser seu proprietário pleno.
O que a ação do Estado questiona é o abuso de poder por parte da então presidente do Iterpa, Rosyan Caldas Brito. O decreto que Simão Jatene assinou, em agosto de 2006, não lhe delegava a competência para promover o resgate: apenas lhe facultava a possibilidade de propor o resgate em lugar da mera transferência do domÃnio útil a um novo foreiro, que seria a Santa Bárbara. A consumação do resgate continuava a ser ato privativo do governador. O decreto de Jatene, baixado depois que o processo ficou estacionado nos escaninhos oficiais durante dois anos, foi redigido de uma forma a possibilitar a interpretação de que autorizava Rosyan a emitir o resgate em seu lugar.
Além do mais, Mutran teria modificado a destinação da área, concedida pelo Estado exclusivamente para a extração vegetal, com a exploração da castanha, que era abundante do vale do Tocantins. Dessa forma, rompeu unilateralmente o contrato. E teria enganado o governo ao vender as terras para Dantas em 2005, sem comunicar o fato e obter a autorização devida, em pleno curso do processo de resgate administrativo, requerido em 2002. Além de todos esses fatores, mesmo que fosse legal, a consumação do resgate só poderia ser consumada com autorização federal, por exceder o limite de autonomia do Estado, de 2.500 hectares.
A ação civil pública requer liminarmente o bloqueio da matrÃcula dos imóveis e a proibição a qualquer ato de transferência, alienação ou oneração das áreas. Pede também a anulação do resgate, que considera "eivado de vÃcios de legalidade", devolvendo-se as terras ao patrimônio público. Dantas e Mutran passariam então, como meros posseiros, a estarem sujeitos "aos procedimentos legais de regularização fundiária das terras públicas", além de terem que indenizar o Estado pelos danos causados ao meio ambiente.
Aparentemente, a ação foi proposta sob a pressão dos acontecimentos que escandalizavam a opinião pública nacional. A referência à aquisição, por Dantas, de áreas do poder público paraense para a formação de um gigantesco conglomerado de fazendas, ligaria o Estado à teia de negócios escusos do banqueiro. Como de regra em suas histórias, o investimento no Pará poderia envolver tráfico de influência e corrupção.
Convinha ao governo do PT se dissociar de pronto desse presumÃvel mar de lama e transferir eventual responsabilidade venal à administração anterior. As aparências sugeriam alguma coisa de escuso numa transação, consumada ao apagar das luzes do governo de Jatene, depois de 12 anos de hegemonia polÃtica tucana no Estado. A ação investe diretamente sobre o abuso de poder da presidente do Iterpa e a leniência do governo com o desvio de finalidade do imóvel e a transferência do aforamento a terceiros sem a autorização do senhorio direto, que é o Estado. Seria a prova da omissão ou conivência do poder público com a ilicitude, que favoreceu Dantas e Benedito Mutran?
Pelos termos da ação civil pública, sem dúvida. Mas o Estado e o Iterpa, que a promoveram, não apuraram os fatos através de sindicância ou inquérito administrativo. É prerrogativa da administração pública rever seus próprios atos, conforme admite a peça e recomendou o procurador autárquico do Iterpa, Raimundo Nonato Barros. Assim, seria possibilitada a defesa aos acusados e o contraditório, para provarem a verdade do que afirmassem. Se assim procedesse, o Estado podia simplesmente cancelar o resgate e só litigar na justiça se quisesse cobrar os danos causados pelo foreiro ao patrimônio público e outras faltas. Ignorando a via administrativa, o governo vai ter que se submeter ao devido processo legal, numa demanda desgastante e insólita.
Embora os demandados sejam Mutran e Dantas, provavelmente eles irão pedir o depoimento da presidente do Iterpa, que poderá chamar à lide tanto o governador Simão Jatene, que lhe delegou os poderes, quanto o então diretor do departamento jurÃdico do instituto de terras, Carlos Lamarão Corrêa. O governador terá que dizer se realmente autorizou Rosyan Brito a assinar o tÃtulo de aforamento ou apenas a orientou a oferecer ao foreiro a possibilidade de resgate. Lamarão reafirmará os termos do seu parecer, que fundamentou do ponto de vista legal o direito do particular ao resgate. E estará exaurida a possibilidade de provas quanto a esse ponto da ação, a não ser que haja alguma demonstração de proveito pessoal de alguém na operação.
Um exame mais acurado, porém, revelará a complexidade da situação. O instituto do aforamento não foi mais previsto ("recepcionado", na linguagem forense) pelo Código Civil de 2002. É por isso que a prefeitura de Belém orientou a partir daà os cartórios de registro de imóveis a não promover mais nenhum ato em relação aos aforamentos da capital, muito mais abundantes no meio urbano do que na área rural. O código apenas confirmou uma tendência da legislação. O Estatuto da Terra, de 1964, já recomendava aos órgãos agrários a extinção gradativa dos aforamentos.
Essa extinção, contudo, não podia ser feita através de um ato fulminante do poder público. Ao foreiro foi concedido o gozo perpétuo da terra aforada. Por ser um direito vitalÃcio, esse instituto começou a provocar reações dos que o consideravam anacrônico, em contradição com os postulados de controle estatal sobre o uso da terra transferida a particulares sob condicionantes (como a da exploração vegetal no "polÃgono das castanheiras" de Marabá). A extinção devia ser processada ou na transferência do domÃnio útil a terceiros, que o Estado não autorizaria, exercendo o direito de preferência na compra (chamado de comisso), ou quando o foreiro requeresse o resgate, prerrogativa exclusiva e irrenunciável do particular.
O resgate devia ser a forma de acabar com esse instituto arcaico, que ainda incide sobre 252 imóveis no Pará, jamais resgatados (o processo de Benedito Mutran foi o primeiro em toda história). Ao invés disso, o Estado simplesmente permitiu as transferências, como se elas não entrassem em conflito com as normas do Estatuto da Terra, que ainda é o código agrário brasileiro. O resgate, entretanto, não é um ato automático. O foreiro precisa demarcar o seu lote e comprovar que cumpriu os termos do acordo assinado com o poder público, que é a prática do extrativismo e o respeito à floresta.
No caso dos seus três aforamentos, Benedito Mutran Filho está inadimplente. Em primeiro lugar por ter transferido o domÃnio útil das terras sem consultar o senhorio, o que caracteriza uma fraude. E também por ter modificado o uso do imóvel, da extração de castanha para a pecuária. Na ação, o Estado e o Iterpa dizem que só tomaram conhecimento do desvio de finalidade quando da vistoria dos imóveis para o resgate, em 2003. A afirmativa é risonha e franca: é público e notório que, desde a colonização da região através da Transamazônica, os castanhais do Tocantins vêm sendo destruÃdos. Em 1987 o então ministro da reforma agrária, Jader Barbalho, comprou 250 mil hectares de castanhais e converteu seu uso para assentamentos rurais, com a aprovação do senhorio, na época, representado pelo governador Hélio Gueiros, que até dispensou o laudêmio.
Em grandes, médias e pequenas propriedades da região, uma caracterÃstica comum nas últimas décadas é a derrubada das castanheiras, hoje reduzidas ao mÃnimo e com perspectivas comprometidas. É que as queimadas, mesmo quando não atingem diretamente a árvore, comprometem a polinização da flor e a frutificação pela abelha, afastada pela fumaça. Já os desmatamentos expõem a castanheira à s fragilidades do isolamento, provocando a sua queda.
No caso dos dois aforamentos, a perÃcia não chegou a definir claramente se a iniciativa de derrubar as castanheiras foi do foreiro ou de invasores, estabelecendo as parcelas de cada uma das responsabilidades. Mas, como o perito do Iterpa não encontrou, em 2003, um único conflito de terra na fazenda nem a presença de um só posseiro, tudo indica que a derrubada dos castanhais foi decidida pelo foreiro. Desde 1985 ele se dedica à pecuária de corte, praticada de forma tão intensiva (14 mil cabeças colocadas sobre 9 mil hectares de pasto) que a reserva legal obrigatória representa apenas 40% da área do imóvel, quando devia ser de 50%, pelo Código Florestal, ou 80%, segundo sua modificação posterior. Do ponto de vista ambiental, portanto, o imóvel é ilegal.
Mesmo que a definição técnica seja possÃvel agora e ainda que o Estado vença a demanda judicial, haverá uma situação concreta: como indenizar as benfeitorias úteis e necessárias realizadas pelo foreiro? Se nos dois imóveis atacados pela ação civil pública estão sediados alguns dos investimentos descritos pelas duas entidades patronais que premiaram a empresa de Daniel Dantas, o valor do ressarcimento será alto.
Ainda que o governo se disponha a assumi-lo, haveria ainda outro problema: o que fazer na área? Ela parece ser produtiva para a pecuária graças ao uso intensivo de tecnologia nos pastos e no rebanho. Mas poderá ter o mesmo uso em assentamentos de pequenos produtores rurais, especializados em cultivos alimentares? O Ministério do Meio Ambiente acaba de acusar os assentamentos do Incra como os principais responsáveis pelo desmatamento recente na Amazônia, derrubando o mito da sua auto-sustentabilidade (sequer adequados eles são para a região).
São muitas as perguntas que a iniciativa do Estado e do Iterpa pode suscitar, provavelmente mais do que seus promotores devem ter imaginado ao investir contra um personagem tão estigmatizado no momento. Os protagonistas podem ter suposto criar uma cena de mocinho contra bandido, mas a complicada estrutura fundiária do Pará não autoriza campos tão claramente distintos e separados, pelo menos enquanto houver uma ordem jurÃdica. Mesmo a Constituição de 1988, que se propôs inaugurar uma nova era no Brasil, com o predomÃnio dos direitos civis, reconheceu o direito adquirido e o ato jurÃdico perfeito.
A extinção dos aforamentos, que devia ter sido promovida a partir da edição do Estatuto da Terra, há 44 anos, foi sendo protelada por sucessivas administrações estaduais desde então. Enquanto isso, as situações mudavam. Só que a dinâmica social não foi acompanhada pelo poder público. Ele só costuma despertar da sua letargia provocado por conflitos sangrentos ou pressões poderosas. Costuma agir por impulso imediato, evitar sua ligação com fatos polêmicos e lançar culpa sobre o passado. Acaba por criar problemas para o sucessor, numa das regras do serviço público: a protelação.
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Lúcio Flávio Pinto é o editor do Jornal Pessoal, de Belém, e autor, entre outros, de O jornalismo na linha de tiro (2006) e Contra o poder. 20 anos de Jornal Pessoal: uma paixão amazônica (2007).