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Accountability e Reforma Política

Hamilton Garcia de Lima - Abril 2011
 

A crítica mais ouvida à proposta de institucionalização da lista fechada no sistema proporcional vigente no país é a de que esse procedimento enfraqueceria o vínculo entre os candidatos e os eleitores, levando à "ditadura das cúpulas partidárias" em detrimento do direito de escolha do eleitor.

A crítica é fraca sob variados aspectos; vejamos alguns. Uma das razões para que a reforma política não saia da agenda do país, apesar da contrariedade da classe política, é precisamente o fato de que o modelo vigente (proporcional de lista aberta) levou, ao longo dos anos, o vínculo entre parlamentares e eleitores aos piores patamares da história republicana - ao contrário do juízo de muitas autoridades acadêmicas, que, nos anos 1990-2000, prognosticavam o amadurecimento desse modelo.

Os motivos para essa deterioração crescente são muitos, mas deve-se destacar, em particular, a opacidade do método de distribuição das cadeiras legislativas pelo coeficiente partidário-coligacional, que faz a "mágica", aos olhos dos eleitores, de eleger candidatos com os votos dos não eleitos, de tal modo que nem os políticos, em sua esmagadora maioria, sabem exatamente de onde vêm os votos que os elegeram, nem os eleitores a quem seus votos efetivamente consagraram, pois a grande maioria votou em candidatos que não se elegeram.

Não bastasse isso - em si já suficiente para explicar o descontrole do eleitor sobre seu representante e o desarranjo do sistema como um todo -, a dinâmica eleitoral que vigora no país reforça a cultura do eleitor individual que supostamente, como vimos, escolhe o candidato individual, usando para tal seu discernimento natural. A fábula abstrata da razão individual, descolada de contextos (interesses), estruturas (instituições) e tradições (cultura), só serve para encobrir o mal-entendido acerca do direito de escolha do eleitor, sendo, portanto, igualmente mau paradigma filosófico-científico.

Na verdade, ao contrário do que propõe esse tipo de perspectiva individualista debruçada sobre a cena brasileira, em nosso caso o indivíduo eleitor encontra-se perdido num cipoal de siglas e nomes que pouco significam e que o impedem de ter a visibilidade mínima para qualquer escolha razoável, mesmo que apenas em termos de seu interesse individual. Sendo obrigado a votar - obrigatoriedade que, por isso, se torna o principal esteio do atual sistema político -, o eleitor tenta se safar escolhendo estrelas-guia (outsiders) do tipo candidatos-celebridades, que se destacam naturalmente no cenário de nulidades políticas individuais, ou por alguma materialidade imediata, individualmente significativa, como as ofertas de vantagens ou acesso ao sistema de poder, tudo isso sem maiores considerações acerca dos efeitos colaterais de tais opções políticas.

Na cabeça de importantes segmentos do eleitorado, a oferta de serviços públicos pelos canais privados da clientela eleitoral, em detrimento do contribuinte-eleitor genérico, aparece como um ganho desconectado das causas da má qualidade do setor público em geral, sendo mesmo uma forma de remediá-la.

Esse descaminho do Estado, todavia, não produz efeitos apenas sobre as políticas públicas, mas igualmente sobre o processo democrático, atingindo de modo devastador a relação eleitor/eleito, sem que a abordagem individualista disto tenha a menosr ideia. Trata-se aqui de um poderoso fetiche político nacional que, à semelhança do fetiche da mercadoria discutido por Marx em O capital, transforma, por meio da gratidão, o eleitor de portador da soberania do voto em devedor de um patrono que lhe concede, sob a forma de favor, aquilo que formalmente está estabelecido como um direito, distorção esta tão ou mais grave como aquela ensejada pelo poder econômico privado e seus enlaces de privilégios e superfaturamentos com a classe política.

Toda essa realidade fere de morte o direito de escolha do eleitor nas eleições proporcionais com lista aberta e deveria ser objeto de reversão na atual reforma política em discussão no parlamento, por parte daqueles que enxergam a responsabilização como o eixo saneador da vida pública no Brasil.

É sob esse prisma que se colocam no tabuleiro outros instrumentos para a reforma política, como o financiamento público de campanha, que responsabiliza o partido pelos gastos eleitorais, e mesmo a Lei da Ficha Limpa, que responsabiliza os gestores pelo desvio de finalidade do Estado.

Entre todas estas formas, a mais abrangente e profunda é, sem dúvida, a responsabilização do político pelo eleitor, sem perda da pluralidade político-ideológica duramente conquista nos anos 1970-80, o que só é possível pela implantação da lista fechada no modelo proporcional em vigor, de modo a fortalecer o partido naquilo que ele tem de melhor: formador de elites políticas genuinamente ligadas aos interesses sociais que o lastreiam e, como indicava Weber em Parlamentarismo e governo numa Alemanha reconstruída, constituem a alma da democracia parlamentar.

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Hamilton Garcia de Lima é cientista político e professor da UENF, em Campos.



Fonte: Especial para Gramsci e o Brasil.

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