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Flores Galindo e a leitura de Gramsci

Marcos Sorrilha Pinheiro - Março 2012
 

Alberto Flores Galindo (1949-1990) figura como um dos principais intelectuais peruanos do século XX [1]. Historiador de formação, foi um profícuo articulista, intervindo constantemente em questões relacionadas aos dilemas sociopolíticos de seu país, principalmente nas décadas de 1970 e 1980. Intelectual "das antigas", entendia que a História deveria ser posta a serviço do presente e, por conseguinte, o seu trabalho historiográfico deveria ser sobretudo resultado das inquietações de seu tempo. Socialista convicto, buscou desenvolver um tipo de interpretação que atendesse às necessidades de sua realidade. Como forma de mesclar o socialismo com a cultura peruana, realizou uma profunda releitura da obra de José Carlos Mariátegui.

Assim como Mariátegui, Flores Galindo tornou-se adepto de uma concepção do marxismo geralmente caracterizada como heterodoxa. Tal heterodoxia encontra relação com um momento especifico da história das esquerdas: a crise do stalinismo, as revoluções cubana e chinesa, a morte de Che, o boom mariateguista da década de 1970 na América Latina, entre outros. Mas, além disso, existem elementos próprios de sua formação que nos ajudam a compreender a opção pela heterodoxia. Já na época de faculdade, a aproximação à História Social Inglesa e a autores como Thompson permitiu que Flores Galindo rompesse com uma interpretação meramente econômica do marxismo, típica das formulações ortodoxas, como fica claro em sua monografia de conclusão de curso intitulada, Los Mineros de la Cerro de Pasco (1971).

Logo após o término de sua formação acadêmica, Flores Galindo viajou para a França, dando início à suas pesquisas para a obtenção do seu doutoramento. Permaneceu por dois anos em Paris. Esse período foi decisivo para a definição de suas concepções historiográficas e seu posicionamento intelectual. É na França, por exemplo, onde decide não se vincular a qualquer partido, alegando que o partidarismo limita a liberdade, princípio fundamental para o desempenho das atividades de um intelectual. Foi na França, também, que Flores Galindo se aproximou de algumas concepções historiográficas da escola francesa de História, como os conceitos de mentalidades e longa duração. Além disso, a presença em território europeu e o seu envolvimento amoroso com uma jovem historiadora italiana levaram-no a se aproximar da historiografia da península e adquirir algumas obras em viagens feitas àquele país.

Todas essas informações são fornecidas pelo próprio Flores Galindo em cartas escritas entre novembro de 1973 e junho de 1974 [2]. As epístolas endereçadas a Manuel Burga no Peru, além de informarem ao amigo a respeito das novidades francesas, funcionavam como uma espécie de diário, uma conversa não apenas com seu interlocutor, mas uma forma de superar o isolamento e a solidão. Nessas cartas/anotações surgem os temas mais diversos. No entanto, um que realmente chama a atenção de qualquer leitor é a "sua descoberta de Gramsci". Apesar de muito provável, não sabemos se o pensador italiano já lhe havia sido apresentado em algum outro momento de sua vida. No entanto, a aproximação à literatura italiana feita em solo europeu lhe deu a oportunidade de realmente ler Gramsci. Vejamos como isso aparece em suas cartas.

Em 16 de fevereiro de 1974, após regressar da Itália, anuncia: "[...] o mais importante que eu fiz foi comprar livros [...]. Comprei obras de Croce e Gramsci, que são os pais da historiografia italiana" [3]. Um mês e meio e cinco cartas depois, a leitura das obras do líder comunista italiano começa a surtir efeito em sua correspondência. Em 2 de abril, informando ao amigo sobre suas recentes atividades, adverte:

[...] de minha parte, tenho tratado de terminar um artigo sobre o problema nacional e o problema camponês, avançando em minha tese e lendo Gramsci: as coisas que ele escreveu sobre política e os conceitos que desenvolveu serviriam para reescrever a história política do Peru. Estou convencido de que é uma tolice pensar a história política, em ‘si mesma’, como história auxiliar. Tem sido auxiliar por conta do enfoque que se tem dado: descritivo, empirista, superficial. A análise histórica de Gramsci sobre o Ressurgimento Italiano mostra outras possibilidades [4].
Na carta seguinte, de 20 de maio, o que era uma atividade complementar se converte em item de destaque em sua rotina. As "novidades" trazidas pela leitura deixam Flores Galindo muito impressionado e motivado, como se pode ler:
[...] durante os últimos dias [...] empreendi uma leitura sistemática de Gramsci. É realmente um marxista muito lúcido: suas prerrogativas sobre o problema político, os conceitos que utiliza e seu raciocínio são indispensáveis para pensar qualquer história política ou cultural. A análise que realiza Gramsci dos intelectuais na Itália pode servir para pensar o problema do Peru [...]. O conceito de "revolução passiva" aplicado ao Ressurgimento Italiano pode ajudar a esclarecer a independência em termos mais claros do que os apresentados por Bonilla [5]. Os de partido, hegemonia e bloco histórico seriam indispensáveis para analisar no Peru a atuação dos personagens principais da via política contemporânea: o exército, o comunismo e o aprismo. Graças a Gramsci, na Itália não se descuidaram da história política como ocorreu na França, onde é sinônimo de história évéméntielle, o que me parece uma estupidez [6].
Para Flores Galindo, o texto de Gramsci não seria apenas uma ferramenta fundamental para pensar a história do Peru, mas aparecia como uma resposta à própria historiografia daquele momento que havia classificado a história política como sinônimo de positivismo. Seguimos com sua pena:
Pode-se fazer história política sem permanecer no anedótico ou no superficial. O marxismo não é somente um instrumento para pensar a história econômica: Gramsci, Lenin e o próprio Mao mostram o contrário. [...] O revelador desse mundo teórico é que, ao que parece, o centro do marxismo não está dado pela economia, pelo estudo da estrutura, e sim pelo estudo da política, mas a política como confluência do político propriamente dito (um território determinado, conceitos, leis e métodos), no qual confluem a economia, a cultura, a sociedade: voltar ao fio condutor da luta de classes. Pensar a história em termos de classe mais do que estruturas. Voltar ao marxismo vivo, guia da ação, romper com as marcas do passado-presente, pensar que toda história é história presente. Como vê, estou entusiasmado. O entusiasmo é sempre um bom remédio contra o isolamento e a solidão [7].

É muito interessante ler essas observações feitas por Flores Galindo a partir da leitura de Gramsci. Como sabemos, no final da década de 1970 a história política finalmente empreendeu o seu ressurgimento, conseguindo apresentar novas abordagens e metodologias que lhe permitiram estabelecer resultados relevantes no cenário acadêmico. Nesta retomada, Gramsci teve um papel fundamental, influenciando historiadores de várias partes do mundo. Não é difícil perceber que esta tendência foi antevista pelo peruano. De qualquer maneira, a importância de Gramsci para Flores Galindo está justamente nesta perspectiva: pensar a história política seguindo novos referenciais, colocar a história sempre no presente e produzir um marxismo vivo. Este marxismo vivo estaria diretamente relacionado ao socialismo heterodoxo característico de sua trajetória. Pode-se afirmar com clareza que Flores Galindo não foi um gramsciano. No entanto, é inevitável anotar que, no momento de sua formação intelectual, foi com Gramsci que entendeu o sentido do marxismo como guia da ação e não como modelo pronto e acabado.

Tal aprendizado resultou na formulação de uma nova maneira de compreender o Peru e sua História, conforme se anunciava em suas cartas. No lugar de um passado de derrotas e oportunidades perdidas, o que se vê é a busca por novos agentes revolucionários presentes num passado capaz de inspirar o futuro do país. Neste ponto, o andino ganhou uma centralidade que se refletiu não apenas em seus livros, mas em sua atuação intelectual junto às comunidades andinas e de trabalhadores de origem indígena, o que demonstra essa maneira de buscar viver o socialismo para além das reflexões conceituais. Analogamente, assim como o passado é posto em função do presente, o pensamento é colocado em perspectiva para a ação.

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Marcos Sorrilha Pinheiro é Professor Assistente Doutor do Departamento de História da Unesp/Franca.

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Notas

[1] Recentemente Flores Galindo apareceu elencado na lista dos dezoito pensadores/políticos peruanos mais importantes do século XX organizada por Rodolfo Loayza Saavedra (2009). Além disso, seu principal livro Buscando un Inca: utopia e identidad en los Andes, figura como um dos "50 livros que todo peruano culto deve ler", segundo ranking organizado por Cristóbal Alvojín, Max Hernandez e Francisco Sagasti (2000).

[2] As 17 cartas foram organizadas em forma de livro em 2010 sob o título de Alberto Flores Galindo: cartas de Francia (1973-1974).

[3] BURGA, Manuel. Alberto Flores Galindo: cartas de Francia (1973-1974). Lima: Sur/ANR, 2010, p. 49.

[4] Ib. p. 70.

[5] Referência ao artigo "La independencia en el Perú" de Heraclio Bonilla de 1971. Entre as várias críticas que o texto faz à independência do país, destacam-se o ataque à elite criolla e à ausência da nação, apresentando uma emancipação sem heróis nacionais, como o resultado de falência do sistema colonial ou um constructo importado por Bolívar e San Martín.

[6] Ib. 73. Parece-nos que a grafia aqui está equivocada. Ao invés de évéméntielle, o autor quis dizer événementielle, que significa "evento".

[7] Ib. 74.

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Fonte: Especial para Gramsci e o Brasil.

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