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2014: dramas e personagens

Luiz Sérgio Henriques - Fevereiro 2013
 

Num tempo de autoproclamado neodesenvolvimentismo, apesar da modéstia das taxas de crescimento, pode-se prever que viveremos não cinquenta anos em cinco, como na situação original, mas pelo menos dois anos em um só, com a superposição de 2013 e 2014 num período mais ou menos contínuo de diferenciação de candidaturas, apresentação de programas divergentes e, por fim, eleições presidenciais propriamente ditas.

Sendo a política, na concepção de falecido político mineiro, sagaz e conservador, uma atividade que guarda relação com o fugaz desenho das nuvens, adivinhar o que nos reserva este tempo compacto de dois anos é tarefa que assustaria até mesmo um autor acostumado a dramatizar ambições, imaginar golpes da fortuna, coreografar danças e contradanças na alma de personagens que não são nunca autores isolados de si próprios. Afinal, como lembrava Ulysses, o patrono da moderna democracia brasileira, as circunstâncias desempenham sempre função crucial, delimitando, corrigindo, ampliando ou mesmo anulando o papel que cada personagem se atribui no correr do drama.

Houve época em que a primeira encarnação da social-democracia brasileira, chegada ao poder em 1995 na esteira de bem-sucedido plano de estabilização, requeria para si um poder que durasse vinte anos. Vinte anos, diziam, é o que seria necessário para a reforma integral do capitalismo brasileiro num sentido que diminuísse drasticamente o poder do Estado - simbolicamente sintetizado na Era Vargas, a qual se projetava, com a roupagem do autoritarismo militar, para o "Estado Novo da UDN" - e libertasse a sociedade capitalista de uma tutela tornada anacrônica. Prolongar a tutela seria tolher as energias e deformar a nova sociedade já plenamente burguesa, assim como antes sucedia ao corpo das crianças por causa do imemorial costume de enfaixá-las a pretexto de lhes garantir crescimento saudável.

A segunda encarnação da social-democracia, no poder há dez anos, não ambicionou nem ambiciona menos. Para realizar seu programa, nunca jamais tentado na história do Brasil, de desenvolvimento e inclusão social acelerada, especialmente através do consumo popular, os mesmos vinte anos ou mais de poder continuado seriam o mínimo requerido. Até nisso estes irmãos siameses desavindos ferozmente, como não raro acontece nos enredos bombásticos, se parecem. Fratelli, coltelli - dizem expressivamente os italianos.

Um dos mais argutos observadores da vida brasileira (cf. Luiz Werneck Vianna, A modernização sem o moderno. Análises de conjuntura da era Lula, Contraponto & Fundação Astrojildo Pereira, 2011) entendeu aquela ambição dos novos donos do poder como um "Estado Novo do PT", entidade omnívora capitaneada por um partido de esquerda que, uma vez assentado na Presidência, pretendeu assimilar tudo e o contrário de tudo, renunciando, no mesmo movimento, a ser fator de ativação da vida cívica e do "progresso intelectual de massas". Nada mais distante, por sinal, da elaboração refinada e complexa de uma nova hegemonia e de um equilíbrio social e econômico mais avançado, que exigem, acima de tudo, escrupuloso respeito das normas do Estado de Direito democrático, o que exclui o "subversivismo elementar" evidenciado, por exemplo, não só na operação dos fatos rotulados como "mensalão", como na reação juvenil e intempestiva às decisões da Suprema Corte, pedra fundamental na defesa dos princípios da Carta de 1988.

Vitórias eleitorais sucessivas podem ser alicerçadas menos numa estratégia hegemônica de longo fôlego do que na criação de mitos extemporâneos - afinal, todo Estado Novo, seja da UDN, seja do PT, demanda alguma forma de DIP e o devido aparelho intelectual. A coalizão de poder produzida por tais vitórias, no entanto, costuma ter um déficit programático que se acentua dramaticamente em conjunturas críticas. Ainda em 2010, a dissidência aberta por Marina Silva sinalizava que a este neodesenvolvimentismo de perfil baixo falta, e talvez de modo insanável, a perspectiva da requalificação ambiental. E num contexto em que a palavra de ordem é "destravar" investimentos, o horizonte pode se restringir ainda mais, a ponto de o meio ambiente, definitivamente, passar a ser muito mais obstáculo a ser cancelado do que recurso para a renovação da economia e reformulação do modo de viver.

A dissidência de Pernambuco, ainda por ser medida e pesada, introduz um personagem saído do coração da mudança eleitoral induzida pelo petismo e seu sistema de bolsas. Pode-se argumentar que pouco se sabe deste PSB dos nossos dias, cuja relação com o venerável partido de Hermes Lima e João Mangabeira é, na prática, inexistente. Argumento forte, a exigir respostas sólidas dos seus líderes, assim como de Marina Silva se espera uma articulação partidária de tipo "orgânico", para que a ação política se descole da área ambiental em sentido estrito e se dirija, apropriadamente, ao conjunto da sociedade.

A aceleração de tempos que marca o final das tramas é sempre a ocasião propícia em que truques se esgotam, máscaras caem e destinos se redefinem. Daqui por diante, as duas social-democracias, com as unilateralidades que protaganizaram nos respectivos ciclos de poder, podem não estar mais sós no palco e, por conseguinte, se verem impedidas de reencenar o surrado duelo de privatistas e estatistas, usado de modo meramente instrumental por falta de discurso menos maniqueu.

Novos atores, no ponto de partida destes dois anos cruciais, ensaiam atropeladamente suas falas, e o fato de ainda parecerem em busca de uma peça ou de um autor, dadas as circunstâncias, não é necessariamente mau sinal. Por ora, muito pelo contrário, são eles que afastam o pesadelo de um monólogo interminável a governar nossas vidas.

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Luiz Sérgio Henriques é o editor de Gramsci e o Brasil.



Fonte: O Estado de S. Paulo, 24 fev. 2013.

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