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"Branquear" Trump

Vital Moreira - Fevereiro 2017
 


Apesar de embaraçada com o rompante radicalismo agressivo de Trump, a direita ideológica, entre nós e lá fora, ensaia duas justificações para branquear a sua deriva autoritária: que ele foi eleito democraticamente e que ele está a cumprir o que anunciou.

Mas o clube dos autocratas por esse mundo fora está cheio de presidentes eleitos que anunciaram ao que iam antes de o serem, desde Maduro a Duterte, desde Putin a Erdogan. A eleição e o anúncio prévio não podem validar o populismo, a arbitrariedade, o desrespeito dos direitos humanos, a violação de compromissos internacionais.

Ao contrário do que defendem muitos comentadores de direita, o problema não está na dificuldade em optar entre o radicalismo de Trump e o radicalismo de alguns dos seus opositores mais vocais, mas sim entre a evidente tentação autocrática de Trump e os princípios e "convenções" da democracia liberal e do Estado de direito.

A incapacidade da direita liberal de se demarcar de Trump é comprometedora. Os "nossos" autocratas não são menos perigosos do que os outros!

Autoritarismo em Washington

No seu ataque à herança política moderada nos Estados Unidos, Trump anunciou a revogação da chamada "emenda Johnson" de 1954, ou seja, da norma legal que proibia a ingerência das igrejas (e outras organizações não lucrativas beneficiárias de isenção de impostos) nas campanhas eleitorais, por exemplo, financiando, apoiando ou rejeitando candidatos ou partidos, sob pena de perda daquelas isenções fiscais.

Ao revogar essa regra até agora politicamente consensual nos Estados Unidos, Trump manifesta ostensivamente o seu agradecimento político pelo empenhado apoio que recebeu dos meios evangélicos no seu caminho para a Casa Branca. Com a revogação da referida lei, Trump vai passar a ter um comício favorável em cada templo evangélico e os púlpitos vão transformar-se em plataformas privilegiadas de combate político, misturando política e religião sem limites.

Ora, o princípio da separação entre o Estado e as igrejas num Estado não confessional como os Estados Unidos deve ser simétrico, estabelecendo limitações tanto para o Estado como para as confissões religiosas.

Não deve limitar-se a proibir o Estado de adotar uma religião oficial e de interferir na organização ou ação das igrejas, devendo incluir também a proibição de as igrejas e os seus ministros, nessa qualidade, interferirem nas eleições e na seleção dos titulares de cargos políticos. Nos termos da lição bíblica, Deus e César (que o mesmo é dizer, a religião e o poder político) devem coabitar um com o outro, mas não devem imiscuir-se nos negócios um do outro. Os procedimentos democráticos dizem respeito aos cidadãos, religiosos ou não, e não às igrejas.

Na sua profunda e arrogante falta de cultura democrática, Trump não respeita nenhum obstáculo legal, por mais razoável que seja.

Os Estados Unidos estão mesmo em muito más mãos. Neste momento a questão é já a de saber se a democracia liberal americana resiste sem graves entorses a este devastador terramoto político!

Com o superpoder pessoal que o regime presidencialista lhe dá, rodeado na Casa Branca por uma tribo de fundamentalistas fieis, apoiado por uma maioria política nas duas câmaras do Congresso e podendo contar dentro em pouco com um Supremo Tribunal Federal alinhado, quem pode salvar a decência e a moderação política do autoritarismo arbitrário de Trump?

As voltas que o Mundo dá!

É assaz comprometedor verificar as várias afinidades substantivas entre o programa político de Trump e a extrema-esquerda europeia.

Além do protecionismo comercial, há mais três importantes convergências: o nacionalismo político e a aversão às instituições transnacionais, o programa económico de investimento público baseado no défice e no endividamento público e, last but not the least, a ostensiva hostilidade à União Europeia.

Não é pouca coisa, nem de menor importância.

Já se sabia que essas teses da extrema-esquerda eram susceptíveis de servir também um programa de direita nacionalista, dadas as suas convergências com as forças da extrema-direita europeia, nomeadamente a Frente Nacional em França. E é verdade que foi Washington que agora adotou essas posições.

Mas que agora a extrema-esquerda e a extrema-direita europeias vejam um seguidor das suas teses nacionalistas e protecionistas em Washington, tradicional campeão mundial do liberalismo e da globalização económica, não deixa de ser surpreendente. Le Pen e Farage já foram a Washington prestar homenagem ao novo oráculo do nacionalismo. A extrema-esquerda europeia que animou o movimento contra o TTIP por essa Europa fora bem podia também ir à Casa Branca agradecer a Trump o enterro daquele, coroando gloriosamente a sua luta. Nem sonhavam com tal "sorte grande" e só lhes fica bem a gratidão!

As voltas que o Mundo dá!

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Vital Moreira é professor em Coimbra e eurodeputado pelo Partido Socialista.





Fonte: Causa Nossa & Gramsci e o Brasil.

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