Há vários anos apresento minha última utopia para buscar uma saÃda para a Amazônia que não seja a bitola que lhe foi imposta há muitos anos: a expansão da fronteira pelo desmatamento, após o qual se estabelecem atividades produtivas destinadas à exportação de matérias-primas. Ou seja: uma fronteira colonial. A resposta tem sido o silêncio absoluto.
De Manaus, Charles R. Clement, biólogo, um dos mais antigos pesquisadores da região, do Inpa (Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia), aceitou o convite para refletir sobre a proposta. Seu texto, na forma de uma carta, a seguir, confirma as qualidades do seu autor: penetrante, profundo e provocador. Talvez consiga, com a crÃtica que fez, atrair mais pessoas interessadas nesse debate.
Caro Lúcio,Â
Quando você estava detalhando sua "última utopia" como contraponto à sua análise certeira da "fronteira colonial", eu estava terminando um ensaio que mostra o contraste entre o passado indÃgena e o subdesenvolvimento atual, intitulado "Da domesticação da floresta ao subdesenvolvimento da Amazônia".
Sua última utopia tem muito a ver com a floresta domesticada pelos povos nativos da Amazônia ao longo dos últimos 10 mil anos, pois você sonha que a sociedade moderna pode desenvolver a Amazônia com a floresta em pé, com respeito à natureza, aos povos indÃgenas e tradicionais, etc. Eu também gosto deste sonho. No entanto, sua análise da fronteira colonial e minha do subdesenvolvimento sugerem que vai ser difÃcil chegar lá desde aqui.
Os povos nativos domesticaram tanto plantas como florestas, à s vezes de forma concomitante. Pense nos castanhais, nos açaizais (especialmente os açaÃs branco e chumbinho do estuário), nos bacabais, nos cacauais, nos tucumazais etc. Eles também domesticaram mandioca, batata doce, cará, taioba, abacaxi, abiu, biribá, pupunha etc., que plantavam em roças e quintais. Na época da conquista europeia, a Amazônia tinha mais floresta do que roça, a população era bem alimentada e saudável, e, sobretudo, era muito abundante.
Não sabemos quantas pessoas viviam na Amazônia naquela época, mas o padre João Daniel fala que foram "descidos" (escravizados) pelo menos 3 milhões de pessoas somente da bacia do rio Negro, frequentemente chamado do rio da fome porque suas águas são pobres em nutrientes. Se os portugueses podiam escravizar 3 milhões de pessoas de um rio de água preta, imagina quantas pessoas deveriam ter vividas ao longo dos rios de água branca!
Evidentemente, a Amazônia não era uma utopia, pois os povos nativos são gente como a gente, bons de briga e intriga, ficavam doentes de vez em quando e certamente tiveram chefes chatos.
Esta Amazônia foi transformada na fronteira colonial que você tão bem retratou e, inspirado em sua análise ao longo de 40 anos, é que eu chamei de subdesenvolvida, que nada mais é do que o termo politicamente correto para a colônia. Os brasileiros, aqueles que vivem na parte geográfica do paÃs que declarou independência de Portugal, e especialmente aqueles que vivem em BrasÃlia, acreditam piamente na velha propaganda da época militar: integrar para não entregar. Não existe integração coisa alguma! A Amazônia passou de colônia de Portugal para colônia de Brasil em 1823, e nunca houve integração polÃtica, econômica ou social de verdade nos 200 anos de lá pra cá.
Por que essa integração é importante? Porque para chegar à sua última utopia precisamos da ação do governo central, mesmo que este governo não possa pagar toda a conta, como você observou. Por que os governos estaduais não podem substituir o governo central? Porque nossas lideranças polÃticas são colonizadas também, anestesiadas pelos últimos 50 anos de propaganda do governo central sobre a integração imaginária do Brasil.
Sempre que querem fazer algo em prol de seus Estados, a primeira ação é ir a BrasÃlia de pires na mão em lugar de se organizar aqui. Quando não recebem o que pedem, voltam para casa e pronto. Com o atual governo central é pior ainda, porque este governo aprovou a emenda constitucional que limita a expansão do orçamento central, deixando menos para ideias inovadoras de desenvolvimento, como sua última utopia, e menos para os Estados e municÃpios.
Mas no sonho tudo é possÃvel, então vamos sonhar que o governo seja federal em lugar de central e vá contribuir, e mais ainda, vai ajudar a encontrar recursos internacionais. A próxima pergunta é se a comunidade de ciência e tecnologia (C&T) tem o que é necessário para viabilizar sua última utopia?
Em termos numéricos, acho que tem, pois nas últimas duas décadas o número de pesquisadores com qualificação aumentou muito na região e o número de universitários também, com a expansão do número de universidades federais, estaduais e privadas. O problema é ideias viáveis que possam gerar resultados a curto e médio prazo, os primeiros 20 anos que você corretamente identificou com sendo crÃticos.
O que é uma ideia viável? É uma ideia que pode ser implantada rapidamente, gerar benefÃcios locais e ser replicável em muitas partes da Amazônia. O número de ideias que podem ser implantadas rapidamente é grande. O problema é que a maioria não é replicável mesmo se geram benefÃcios locais.
A razão é que cada ideia depende não apenas do grupo de C&T que vai colaborar com comunidades locais para implantá-la, mas de infraestrutura de escoamento, estocagem, beneficiamento adicional, comercialização e exportação. Todos os seus leitores sabem que são os "custos do Brasil", que nada mais são do que os custos de subdesenvolvimento, e se trata exatamente dessa infraestrutura.
Na Amazônia, estes custos são maiores ainda, pois a região é mais subdesenvolvida do que outras partes do paÃs, como você comentou na "Fronteira colonial". Se implantar uma rede de kibutzim cientÃficos será caro, resolver a infraestrutura de apoio para que essas ideias geram benefÃcios locais e nacionais será mais ainda. Mas, já que estamos sonhando, é fácil resolver.
De aà vem outra pergunta: que tipos de ideias a comunidade de C&T pode oferecer? No seu ensaio sobre a última utopia, você lembrou dos zoneamentos ecológicos e econômicos (ZEE) do governo central e dos estados. Os ZEEs foram criados com os conhecimentos e as perspectivas da época em que foram desenhados. Por isto, eles estão focados em amenizar os impactos socioambientais das atividades econômicas convencionais - pecuária, soja, fruticultura, aquicultura, extração pesqueira, madeireira e mineral, etc.
De onde vêm os conhecimentos e as perspectivas usados nos ZEEs? Da comunidade de C&T. Ou seja, essa comunidade é boa em apoiar as atividades econômicas atuais, o que não surpreende, porque o governo central planeja e investe para que seja assim. Pense na Embrapa, que eu diria é nossa instituição de C&T mais importante e bem-sucedida.
Mas a maioria de suas pesquisas é para apoiar o agronegócio e pouco vai para ideias alternativas. É a lógica do sistema. Isto azeda o sonho, pois vai exigir novos investimentos em criar uma geração dentro da comunidade de C&T que possa orientar todos os novos mestrandos e doutorandos da última utopia em ideias alternativas.
Aà 20 anos não é mais viável, pois precisamos de pelo menos 10 anos para formar esta turma, assumindo, logicamente, que a comunidade de C&T tem a capacidade de fazer isto. Dada a composição atual da comunidade, acho que 10 anos é um novo sonho.
Num livro de 2015, Sapiens – uma história curta da humanidade, Yuval Harari comenta que "Homo sapiens domina o mundo porque é o único animal que pode acreditar em coisas que existem apenas em sua própria imaginação, tais como deuses, estados, dinheiro e direitos humanos". E utopias. Os direitos humanos são uma utopia que começou a ser construÃda no século passado. Ainda tem muito para fazer, mas mostra que uma ideia pode estimular as pessoas.
Sua última utopia é como a ideia dos diretos humanos 100 anos atrás. Foi proposta, mas ainda não encontrou adeptos. Mesmo que eu tenha identificado buracos no tecido de sua última utopia, a ideia vale tanto por si só, como porque a alternativa é mais desmatamento, menos diretos humanos para amazônidas e mais subdesenvolvimento para todos. A questão é como chegar lá desde aqui? Infelizmente, não tenho uma resposta.
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Lúcio Flávio Pinto é o editor do Jornal Pessoal, de Belém, e do blog Amazônia hoje – a nova colônia mundial. Entre outros, é autor de O jornalismo na linha de tiro (2006), Contra o poder. 20 anos de Jornal Pessoal: uma paixão amazônica (2007), Memória do cotidiano (2008) e A agressão (imprensa e violência na Amazônia) (2008).
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