Bolsonaro e a proposta radical de criar uma sociedade compatÃvel com o capitalismo neoliberal
Luiz Werneck Vianna
- Agosto 2019
Os pronunciamentos polêmicos do presidente Jair Bolsonaro e suas propostas para desenvolver o paÃs fazem parte de uma "polÃtica de estado-maior", de uma "guerra contra o tipo de capitalismo que se implantou aqui e que não conheceu a modalidade do liberalismo radical", diz o sociólogo Luiz Werneck Vianna à IHU On-Line. Segundo ele, o projeto do governo é "criar uma sociedade compatÃvel com um tipo de capitalismo neoliberal que se quer implantar. Isso aparece em tudo: na desvalorização do trabalho e do trabalhador, no expurgo das agências reguladoras para deixar o terreno livre para o capital e sua movimentação e, especialmente, para o grande capital", assegura.
Para reordenar o capitalismo brasileiro, afirma, "a estratégia do governo é criar uma neblina em torno das suas intenções efetivas, fazendo com que a sociedade preste atenção em questões triviais, como a cadeirinha de criança no automóvel. Enquanto se opera isso, se assume o projeto do Guedes, um projeto radical neoliberal, que não tem mais lugar no mundo de hoje".
CrÃtico da modernização autoritária baseada num capitalismo de Estado, o sociólogo também discorda do modelo neoliberal que está sendo implementado pelo governo. "A ideia de criar um paÃs homólogo à s forças do mercado não tem futuro aqui. Vargas não governou assim. O capitalismo brasileiro não foi constituÃdo a partir dessa lógica, mas da lógica da polÃtica, com Vargas, do social, da Consolidação das Leis do Trabalho. Enfim, somos de outra tradição e é com esta tradição que se quer cortar. Daà a relação com Trump, com a coisa americana, como se recriar a América aqui fosse possÃvel".
Na entrevista a seguir, concedida por telefone, Werneck Vianna também comenta a relação do presidente Bolsonaro com o Congresso e o STF. Para o governo, "a Constituição é um estorvo e tem que ser eliminada, e isso está em plena campanha. Por isso, os intérpretes da Constituição, os ministros do STF, são alvos preferenciais. Se quer substituir ao longo do tempo os seus nomes mais representativos, que representam a tradição da cultura brasileira, por nomes inteiramente orientados pelos valores de mercado. Esse é o projeto para os ministros do novo STF", adverte.
Confira a entrevista. A sua tese é a de que o governo quer operar uma polÃtica de estado-maior, intervindo no DNA da nossa sociedade. Pode explicar em que consiste esse objetivo e como isso está sendo feito a partir do método de governo do presidente Bolsonaro?
Este governo vem com uma proposta muito radical, qual seja, desviar o paÃs da sua trajetória tradicional não só na polÃtica interna, mas na polÃtica externa, no tema da cultura, dos valores, em tudo. Isso não é uma tarefa fácil. Então a dificuldade da tarefa está implicando manobras diversionistas: fazer a gente olhar para um lugar, enquanto na verdade está se operando com força em outro lugar.
A meu ver, o projeto neoliberal que o ministro Paulo Guedes encarna é o cerne, o coração da proposta de governo do Bolsonaro. Mas, como isso tem dificuldades porque importa mexer na questão ambiental, abrir o ambiente para a mineração, para o agronegócio - e também em todas as questões em que ele quer intervir os obstáculos não são pequenos -, ele já está desde logo visualizando a reeleição como forma de realizar essas mudanças drásticas, radicais, que quer introduzir na cena polÃtica brasileira. Mudar a história e criar uma outra história é uma operação muito difÃcil, mas esse objetivo vem sendo cultivado há tempos pelas grandes elites econômicas do paÃs. Na verdade, a sustentação maior do Bolsonaro está nas grandes elites econômicas do paÃs, das finanças, do agronegócio.
Há uma continuidade das relações entre o Estado e as elites econômicas, como havia nos governos do PT, ou agora há uma relação diferente?
É uma relação diferente: o governo quer criar uma sociedade compatÃvel com um tipo de capitalismo neoliberal que se quer implantar. Isso aparece em tudo: na desvalorização do trabalho e do trabalhador, no expurgo das agências reguladoras para deixar o terreno livre para o capital e sua movimentação e, especialmente, para o grande capital.
O que ocorre no meio ambiente, neste sentido, é trágico, porque são intervenções que não têm volta, como o desmatamento em escala industrial. Transformar o Brasil numa imensa Cancún para a diversão do turismo internacional também está encontrando resistências, mas o presidente está tentando e não para de tentar. O que ele não conseguir agora, vai tentar no segundo mandato. Ele está envolvido numa guerra de posição.
Em que consiste essa guerra? É uma guerra contra o que especificamente?
Essa guerra é contra a nossa história, contra o tipo de capitalismo que se implantou aqui e que não conheceu a modalidade do liberalismo radical. A nossa modernização capitalista se deu sob o balizamento da ideologia corporativa. Claro que isso importava a tutela do movimento dos trabalhadores, mas importava também polÃticas sociais, tal como ocorreu na Consolidação das Leis do Trabalho, em 1943, a qual ainda está aÃ, toda remendada, mas está vigendo.
Como a sociedade em geral tem reagido ao governo Bolsonaro e à proposta de radicalização do neoliberalismo que seu governo quer implantar, como o senhor afirma?
Ela mal entendeu ainda o que se passa. A estratégia do governo é criar uma neblina em torno das suas intenções efetivas, fazendo com que a sociedade preste atenção em questões triviais, como a cadeirinha de criança no automóvel. Enquanto se opera isso, se assume o projeto do Guedes, um projeto radical neoliberal, que não tem mais lugar no mundo de hoje. Mas esta é uma consideração que a sociedade não está levando em conta: é um projeto radical que vai em frente na medida em que eles [governantes] entendem que há obstáculos institucionais e culturais ao capitalismo brasileiro que precisam ser removidos para que o projeto tenha plena passagem pela imposição.
Pode nos dar alguns exemplos de quais são os obstáculos dos quais o governo está tentando se desvencilhar para implementar seu projeto neoliberal?
A questão do meio ambiente, por exemplo. É preciso abrir espaço para a penetração do agronegócio e dos interesses capitalistas do mundo agrário brasileiro, quer pela agropecuária, quer pela mineração. A mineração degradaria inteiramente as terras em que ela for experimentada, como já ocorreu em outros lugares. Mas eles [governantes] não estão levando em consideração o social, o humano; é uma lógica econômica pura. Não há polÃtica, não há sociedade, há requerimentos lógicos de expansão do capitalismo. É disso que se trata.
As declarações do presidente são deliberadas no sentido de que fazem parte de uma estratégia de governança?
São deliberadas, claro. Essa é uma polÃtica de estado-maior. A caracterÃstica de compaixão da nossa sociedade, que vem da nossa catolicidade e pela ideologia da prosperidade desses pastores ditos pentecostais, é uma operação em curso de larga escala e isso afeta, evidentemente, a percepção sobre o social, sobre os pobres. Cadê o espaço para os perdedores na nossa sociedade no projeto do Bolsonaro? Dos deserdados? Nenhum. Ou seja, só tem um: filiem-se a um culto pentecostal e vivam a experiência da teologia da prosperidade. E virem-se. Vão para a rua vender bugiganga e a partir daà se tornem empresários. Empreendedorismo. É isso. Emprego que é bom, que seria um ângulo absolutamente aberto para uma intervenção presidencial, tornar a economia mais pujante, fazer com que se criem condições de emprego, não se diz palavra sobre isso. Um dos exemplos maiores disso é o projeto de capitalização para a previdência social, de iniciativa do ministro Paulo Guedes, que quer quebrar com a espinha dorsal da Constituição brasileira e da nossa tradição centrada na questão da solidariedade.
Diz a Constituição que um dos objetivos da sociedade brasileira se constitui numa sociedade justa e solidária. Agora a Constituição é um estorvo e tem que ser eliminada, e isso está em plena campanha. Por isso, os intérpretes da Constituição, os ministros do STF, são alvos preferenciais. Se quer substituir ao longo do tempo os seus nomes mais representativos, que representam a tradição da cultura brasileira, por nomes inteiramente orientados pelos valores de mercado. Esse é o projeto para os ministros do novo STF.
Qual é a relação do governo com o atual quadro do STF?
Desta natureza: o STF representa, na medida em que representa a Constituição, um estorvo.
Quando eleito, o presidente disse que queria acabar com o velho jeito de fazer polÃtica no paÃs, isto é, com o presidencialismo de coalizão. Isso está acontecendo? Como vê a relação do governo com os parlamentares e os partidos?
É uma relação difÃcil. Ele tem uma base partidária que não é pequena, diga-se de passagem, mas é muito despreparada e comporta pessoas sem experiência maior e sem informação maior também. Agora, o Congresso como um todo tem dado respostas importantes. Dado que o governo não governa no sentido de revitalizar a economia, o Congresso está fazendo isso e fez a reforma da Previdência praticamente sozinho, e a reforma tributária, ao que parece, vai na mesma direção.
O governo pode perder apoio e se enfraquecer por conta das declarações e das decisões polêmicas do presidente?
Pode, mas as bases de sustentação dele são muito poderosas, sobretudo no grande capital e nos meios de comunicação de massa. A sustentação dele é muito forte; além do mais, a sociedade brasileira mudou e, em certo sentido, para pior: o sistema educacional não opera há décadas. A cultura do ressentimento está em curso e se expressa no eleitor do Bolsonaro, que é ressentido.
O governo também tem uma base de apoio popular?
O governo conta, ainda, com o apoio considerável de parte da população. Agora, o mundo gira e isso muda. O governo Lula chegou a ter 80% de aprovação e, não obstante, a polÃtica do PT virou quase um estigma.
Qual é o papel do centro diante do projeto neoliberal do governo?
De resistência, porque essas propostas e o estÃmulo neoliberal não têm a cara do paÃs; é uma cara estrangeira. Não fomos criados a partir dessa matriz; nós nascemos da Ibéria, do mundo da catolicidade. Nós não nascemos do protestantismo nem nossas origens são anglo-saxãs. Nossa origem é diversa.
Como a esquerda tem reagido e feito oposição ao projeto do governo?
A esquerda ainda não se deu conta de tudo que aconteceu e dos erros que ela cometeu. Isso tudo vai ficar mais ou menos claro com a abertura do processo eleitoral para as eleições municipais. Ou a esquerda vai ter uma polÃtica aberta ou vai se fechar em si mesma e vai perder mais uma vez as eleições.
O senhor aposta em qual caminho?
Não tenho aposta. Estou vendo as dificuldades da esquerda em tomar uma orientação melhor, mas torço para que ela tome.
O atual governo sinaliza uma ruptura com a modernização autoritária do paÃs?
A modernização autoritária tem a ver com um Estado mais atuante, mais interventor, com um capitalismo de Estado. A proposta do que está aà é diversa: é tirar o Estado, a polÃtica e o social da frente; é governar segundo a lógica do mercado. Acho estranho os militares apoiarem um governo com esse estilo, porque a história dos militares vai na direção oposta, na direção do [marechal Cândido] Rondon, de Euclides da Cunha, do nacional-desenvolvimentismo, do [Ernesto] Geisel, da Petrobras.
Por que eles mudaram de orientação?
Pelo fantasma da esquerda, fantasma da ideologia, do PT, e também porque esses militares que são agora dominantes foram os militares que estavam dando suporte e que queriam a continuidade do regime militar na sua radicalidade, com o AI-5, a repressão total. Esses são os homens que emergiram agora. Daà que o presidente sempre faz referência ao grupo dos porões, a ser valorizado.
O que seria uma alternativa ao neoliberalismo proposto pelo governo, mas também ao capitalismo de Estado da modernização autoritária?
Tem sempre o caminho da discussão, do pluralismo, da democracia. A nossa vocação natural é uma social-democracia. Foi para essa direção que PT e PSDB marcharam, mas não souberam manobrar, não souberam operar suas posições e perderam terreno. Mas eu diria que a vocação do paÃs é de natureza social-democrata. A Carta de 88 é de feitio social-democrata.
O governo está interessado numa solução radical. Agora, se ele vai aceitar alterações pontuais, parciais, é uma possibilidade, mas não acredito. Acho que ele vai em frente. Nisso ele tem sido muito audacioso. A tentativa de nomear o filho, o senador Eduardo, a embaixador nos EUA, mostra que Bolsonaro não conhece limites.
Que consequências o modelo de Estado que o presidente quer implementar podem trazer para o paÃs?
Pode trazer anomia, desordem, protestos massivos, pode tornar o paÃs ingovernável, porque a ideia de criar um paÃs homólogo à s forças do mercado não tem futuro aqui. Vargas não governou assim. O capitalismo brasileiro não foi constituÃdo a partir dessa lógica, mas da lógica da polÃtica, com Vargas, do social, da Consolidação das Leis do Trabalho. Enfim, somos de outra tradição e é com esta tradição que se quer cortar. Daà a relação com Trump, com a coisa americana, como se recriar a América aqui fosse possÃvel. Mas esse é um sonho acalentado por setores da elite econômica há décadas; não há nada de novo nisso. Eles encontraram essa oportunidade agora e vão em frente, e o Bolsonaro é um instrumento para a realização disso. ---------- Observador polÃtico 2019
Fonte: IHU On-Line & Gramsci e o Brasil.
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