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"Demissão de Mandetta é revés para uma boa política de enfrentamento da pandemia"

Paulo Fábio Dantas Neto - Abril 2020
 


Nesta entrevista dada ao jornalista Guilherme Reis, da Tribuna da Bahia, em Salvador, no último 20 de abril, o cientista político e professor da UFBA Paulo Fábio Dantas Neto busca enquadrar a grande emergência sanitária no contexto da crise política não menos atordoante que nos atinge. Este texto deve ser lido com outro aqui mesmo publicado há alguns dias, Solidariedade e conciliação: sinais de fumaça da política em tempo de pandemia, e ambos vistos como tentativa de entender como governantes programaticamente iliberais, como o presidente Bolsonaro, lidam com situações inéditas, potencialmente geradoras não só de caos nos hospitais e na saúde pública - o que já seria de gravidade ímpar -, mas também de caos social mais ou menos generalizado.   

Qual o impacto político da saída de Mandetta?

É um revés para uma boa política de enfrentamento da pandemia. Esse é o impacto mais importante. Atinge todo mundo. A sociedade perde, ao menos momentaneamente, a orientação, segura, transparente e diária que vinha sendo dada pelo Ministério da Saúde, numa conjuntura crítica, de incerteza e medo. O próprio Estado sofre, porque suas instituições, flagrantemente em desacordo com a decisão presidencial, tendem a ficar ainda mais tensionadas. E perde o governo, particularmente, que terá que alterar conceitos políticos, procedimentos técnicos e rotinas administrativas em pleno desenrolar de uma situação crítica.

O impacto sobre o Presidente da República, penso que é ambíguo. De um lado, o fato dele ter tomado uma decisão na contramão da ampla maioria da população certamente desgasta mais sua imagem, já bastante desgastada por sua conduta imprudente no cargo, que não começou agora. Ao mesmo tempo o devolve ao jogo, pois ele retoma, em parte, a iniciativa política que perdera por causa dessa conduta. Ele não abandonou a atitude imprudente, longe disso, mas, radicalizando-a, criou nova situação e parece começar a sair das cordas, reanimando suas falanges - as radicais e as áulicas -, energizadas com a ostentação de autoridade. Acima de tudo, afastou do seu governo uma personalidade política em ascensão, no caso o ex-ministro Mandetta, que ele logo enxergou como concorrente. De fato, desde que Lula caiu no ostracismo e Sergio Moro foi absorvido pela rotina de governo e por seu próprio elitismo, ninguém conseguia se comunicar embaixo com a população como Mandetta conseguiu. Tirando-o dos holofotes, mesmo ao preço de colocar a saúde pública em sério risco, o presidente espera reverter um jogo que lhe vem sendo desfavorável. Parece ter sido essa a intenção. Próximas semanas e meses mostrarão o tamanho da distância entre a intenção e consequências políticas reais do gesto.

Setores da esquerda e da direita chegaram a apoiar Mandetta. Isso é interessante principalmente vindo da esquerda, que antes criticava a atuação do ministro. Que leitura podemos fazer disso?

Uma leitura cautelosa. Mandetta teve apoio da população à sua conduta, em parte por méritos pessoais de quadro tecnicamente correto da área da saúde e quadro político afeito ao entendimento e à articulação, dotado do talento para gerar empatia com públicos amplos. Em outra parte, pela sinergia entre a equipe do ministério e o engajamento da comunidade técnica da saúde. Com espírito público e consistente experiência em gestão da saúde pública ela soube se impor e o ministro a valorizou, como fez com a comunidade científica e acadêmica. Também pela ampla adesão da imprensa e da sociedade civil ao conceito geral da política adotada pelo MS.

Penso que a amplidão desse apoio influenciou a atitude das forças políticas. Mas nessa área, a meu ver, o apoio à personalidade pública do ministro não teve o mesmo tamanho do apoio à política do MS. Foi assim inclusive com forças ditas de centro e centro-direita, com as quais ele interage com mais facilidade, por afinidade prévia. É compreensível que tenha sido assim, pois há projetos políticos como o do governador de São Paulo, aos quais a ascensão popular do ex-ministro não teria como ser ideia simpática, ainda que sejam convergentes as visões acerca do combate à epidemia. A possibilidade do DEM passar a cogitar o nome de Mandetta para 2022 não seria despercebida. Já na esquerda a atitude em geral não foi hostil, mas cooperativa (caso dos governadores), combinada a silêncio obsequioso das bancadas parlamentares e reticências e ressalvas, geralmente ligadas no retrovisor, nas redes sociais e sites ligados a ela. O trânsito ficou mais fluente com o embate entre Mandetta e Bolsonaro. Mas na reta final, perto da queda, o ainda ministro teve restrições diretas de Lula e Ciro Gomes. Elogios no campo político da esquerda só se tornaram mais visíveis após sua saída do ministério.

Acredita que Bolsonaro esteja isolado politicamente?

Sim. Isso é constatado por nove entre dez analistas da política brasileira. Mas faço duas ressalvas. Primeiro que o isolamento chegou ao auge na primeira semana de abril, quando lhe faltou, inclusive, condições para demitir o então ministro da Saúde. Mas a partir daí nota-se uma operação para tirá-lo das cordas, levada a cabo pelos seus ministros militares, articulados a parte do empresariado brasileiro. É significativo o dado de recente pesquisa do DataFolha de que 48% do empresariado, em geral, aprovaram a mudança do ministro. Trata-se, ao que parece, de uma operação de estado maior em pleno curso, mesmo que o perfil político e pessoal de Bolsonaro a dificulte. A segunda ressalva é que, para um político com atitude política extremista e personalidade arrogante como as de Bolsonaro, isolamento político não deve levar a recuo, reflexão e reorientação de conduta. Assim reagiria um liberal-democrata e ele é a antítese disso. Para políticos como Bolsonaro, isolamento é convite à radicalização.

A culpa do aumento no número de mortos vai cair no colo do presidente?

Parece inevitável que isso ocorra, mesmo que não haja uma relação necessária de causa e efeito, pois nunca se poderá mensurar com precisão em que grau o afrouxamento do isolamento social se deve à influência do presidente e em que medida o afrouxamento causará maior contaminação. Não haverá provas disso, mas já há uma forte conexão de sentido, que será difícil seu discurso neutralizar, nas condições da nossa democracia. Ainda mais quando se somar, à crise sanitária, uma dura recessão econômica, com suas implicações sociais.

O que esperar do novo ministro? Ele parece unir ideias defendidas tanto por Mandetta quanto por setores mais alinhados ao bolsonarismo.

Como bem assinalou a colunista Miriam Leitão, ele ainda não disse a que veio. Talvez consiga dizer, mas duvido que consiga realizar seus intentos sendo apenas um técnico, no sentido estrito. Penso que o processo confirmará a afirmação do seu antecessor de que sem política não há caminho. E me parece que no novo esquema o que está combinado é que a política vai caber a Bolsonaro, mordendo, e a seus militares, assoprando.

Enxerga estratégia premeditada de Bolsonaro no tocante ao discurso sobre o vírus ou ele está desorientado?

Enxergo uma estratégia de governo, da qual Bolsonaro faz parte de modo pouco usual para quem ocupa o cargo de presidente. Há momentos de confusão, mas não desorientação. A pandemia e o affair com Mandetta serviram, a meu ver, para desfazer dois erros de interpretação difundidos durante o primeiro ano do governo. Pensava-se em alguns ministros militares como representantes da corporação dentro do governo e que eles, nessa condição, estariam contendo um presidente incompetente e radical para o país ser governado apesar dele, com racionalidade e moderação. Parece-me claro, agora, que o Gal. Braga e os paraquedistas que ocupam salas no Planalto ou na Esplanada não o fazem como agentes do Estado, ou da corporação militar, mas como governistas cujo objetivo é sustentar esse específico governo, dando a Bolsonaro condições de governar. Quando o convenceram a não exonerar Mandetta, naquele dia do fico, quem estava sendo blindado era o próprio Bolsonaro, não o ministro. Esse começou a ser fritado em fogo alto no dia seguinte e não a partir da sua entrevista ao Fantástico, uma semana depois. Vejo aquela entrevista como uma reação de Mandetta e do DEM para consumar um desenlace já decidido pelo governo, por um entendimento entre Bolsonaro e seu militares.

Isso não significa que, mais adiante, essa simbiose se manterá. Mas, caso se desfaça, o plano alternativo não parece ser o de dar protagonismo, com vistas a 2022, a um político democrático, seja de esquerda, ou mesmo de centro, direita ou centro-direita, como Mandetta, Doria, Maia ou outro qualquer. Vejo hoje em movimento um projeto de guardiania que tem e terá relação tensa com a ampla democracia política que vigora no Brasil. Se depender desse grupo de militares (insisto que não me refiro à corporação, mas a um grupo político), seu colega fardado que ocupa a vice-presidência da República pode ter um destino político além do de um presidente-tampão. Coloca-se aqui, de novo, em questão o tamanho da distância entre a intenção dos militares governistas e as consequências e possibilidades políticas reais dessa estratégia, que vai ficando nítida. A questão política só se resolverá após a pandemia, a depender dos estragos sociais e econômicos que ela provocar.

Mas desde já é possível dizer que esse grupo militar, além de exercer força de gravidade sobre grupos palacianos e ministérios, através dos quais dialoga com políticos e partidos, parece ter certo apoio empresarial. Serve-se de um pensamento estratégico, cuja formulação pode estar, aí sim, na corporação militar, ainda que sua execução não conte com ela. O calcanhar de Aquiles está na baixa perícia desse grupo no manejo da política, que é necessária para operar a estratégia. Já as lideranças civis, que formam a elite política, se têm revelado prudentes e hábeis em táticas de conjuntura nessa quadra difícil, mas, ainda na defensiva e presas ao imediatismo, parecem se ressentir de uma estratégia positiva que lhes dê unidade ao lidar com desafios de médio e longo prazos. Sintoma disso foi não terem encarado a ascensão pública do ex-ministro Mandetta como capital político comum, para dar nome e sobrenome à ideia de centro político que se cogita para tirar o país de uma polarização política estéril. Se já houvessem se entendido sobre esse ponto, o desafio da saúde pública justificaria ensaios de reação política e institucional à exoneração do ministro. Se não poderiam impedir Bolsonaro e os militares de removê-lo, ao menos teriam mostrado a eles que o preço político para plantar uma guardiania em vestes de democracia no Brasil não será baixo, como pode ser se o centro político permanecer fragmentado. Mas os dados ainda rolam. Vejo a unidade da elite política civil como um processo em construção.

Acredita que há motivo e espaço para a abertura de um processo de impeachment ainda neste ano?

Só adivinhos são capazes de responder a essa pergunta. Depende de um conglomerado de fatos, circunstâncias e vontades. Fatos como a extensão da crise sanitária e de suas consequências econômicas, no Brasil e fora dele. Circunstâncias como o humor do eleitorado, a ser captado em pesquisas no pós-pandemia, ou como a realização ou não de eleições esse ano. Vontades traduzidas em estratégias de atores políticos relevantes, nos âmbitos dos três poderes e nos partidos, com destaque para a atitude e atos do presidente. E as de agentes organizados na sociedade civil, incluindo aí imprensa, empresariado e organizações populares. Matemáticos poderão armar uma matriz de probabilidades a partir dessas variáveis. Analistas e cientistas políticos precisam esperar.

De que maneira o coronavírus vai interferir na eleição deste ano?

De múltiplas maneiras, a começar pela possibilidade de adiá-la e até pela eventualidade de eliminar fisicamente alguns concorrentes. Do ponto de vista do debate político, se a eleição ocorrer esse ano, ou no próximo, pode acentuar ou abrandar polarizações, a depender da resposta política dos governantes e da reação da sociedade à pandemia. A saúde pública e o sistema de saúde devem conquistar um lugar de destaque em discursos e programas eleitorais. O processo consagrará atuais prefeitos e causará a desgraça política de outros, etc.

O que pensa sobre unificar a eleição para 2022?

A princípio, acho ruim. Um retrocesso na autonomia que os pleitos municipais passaram a ter na política brasileira, permitindo maior influência do eleitor sobre os destinos de suas cidades. Unificar os pleitos, seja com argumentos financeiros, políticos ou gerenciais é, em tese, apostar em maior verticalização do contencioso político e em diminuir a diversidade, em favor da polarização. Contrariaria a tradição política brasileira, na qual a representação municipal é instituição singular, historicamente resistente, como mostrou o historiador Jorge Caldeira. Mas tudo isso são palpites, não posições de princípio. Eleições fazem bem, por isso não vejo por que reduzir seu número. Se for preciso adiar a desse ano, como parece que será, é preferível adiar por alguns meses apenas, garantindo a separação dos pleitos. Mas se circunstâncias objetivas impuserem a unificação, penso que não será uma tragédia. Se a democracia for garantida, todo limão pode virar uma limonada.

Em relação à campanha, caso a eleição seja mantida, que estratégias os candidatos poderão adotar frente ao vírus? As redes sociais terão mais preponderância?

Não me sinto suficientemente informado, nem tenho reflexão bastante para responder a essa pergunta.

O PT vai ser ainda mais prejudicado nas eleições em Salvador? Não lançou Denice ainda e Bruno Reis tem aparecido ao lado de ACM Neto na condução da crise...

Não vejo uma relação necessária entre as duas circunstâncias. A eleição passou a ser um evento longínquo. A população estaria mentalmente doente se estivesse ligada em eleições numa hora dessas. Ela está tensa, a sociedade alerta, a cidadania espero que atenta, mas o eleitorado, esse está em recesso.

A atual pandemia de coronavírus vai intensificar o movimento autoritário que tem crescido no mundo?

Para responder com segurança eu teria que ter mais conhecimento sistemático sobre política internacional do que efetivamente tenho. A princípio espero o oposto, ao menos no mundo das democracias historicamente mais consolidadas. Elas vinham sendo atacadas pelo populismo autoritário que aposta na polarização e na xenofobia. A crise põe em evidência a coesão interna e a cooperação internacional como ferramentas virtuosas para vencê-la. Tendo a confiar no instinto de sobrevivência da humanidade, mas admito que isso é mais uma manifestação de desejo, apoiada em valores, do que uma análise concreta de uma situação concreta. Vou ficar devendo.

Como avalia as posturas do governador Rui Costa e do prefeito ACM Neto no enfrentamento da crise, indo, inclusive, contra o que pensa o Palácio do Planalto?

Avalio ambas as condutas como bastante positivas, do ponto de vista das mensagens públicas. Até aqui não há sinal de competição entre os dois entes federativos. Isso é muito bom para os baianos e soteropolitanos.

Caso o governo não caia até 2022, que frutos Bolsonaro poderá colher disso tudo? Chegará forte ou enfraquecido na tentativa de reeleição?

Não sei. As nuvens são espessas e o chão movediço. Não podemos divisar o céu nem queremos nos acercar do inferno, para sabermos onde o presidente e sua política estão sendo aguardados. Espero que lhes sejam reservados os frutos mais amargos.

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Fonte: Tribuna da Bahia, 20 abr 2020

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