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Hic Rhodus hic salta

Luiz Werneck Vianna - Janeiro 2021
 



Nesse tempo de espantos algo já se pode dizer: perderam todos os que se empenharam em imprimir uma marcha à ré no movimento das coisas no mundo com a derrota no processo eleitoral de Donald Trump, que os liderava a partir do poder e da influência que o governo dos EUA exerce na cena mundial. Em poucos dias, Joe Biden, cuja campanha se orientou por princípios opostos de política externa, será ungido com a faixa presidencial, devolvendo o seu país ao seu leito natural historicamente constituído, exemplar no processo de criação da ONU. O eixo do mal, portador de versões degradadas do nacionalismo em moldes populistas, perde a sustentação do pino que garantia seu funcionamento, e as peças que ainda lhe restam não terão como operar sem o amparo do sistema de que faziam parte.

Cerra-se um ciclo que se iniciou no governo Thatcher, aprofundou-se com Reagan e culminou com Donald Trump, em que se tentou com a fórmula neoliberal nos devolver ao capitalismo vitoriano. As promessas de um novo tempo, contudo, se encontram embaçadas pelo flagelo da pandemia que nos assola e tolhe a livre movimentação das forças sociais, embora estimulem a procura por soluções cooperativas supranacionais. Nesse sentido, o esforço mobilizado para o combate contra ela ainda mais reforça o processo de transição em que estamos envolvidos para uma era de superação do modelo de estado-nação em favor de organizações multinacionais que se comprometam com os ideais da igual-liberdade.

Essa transição não será um processo fácil, à sua frente poderosos obstáculos, políticos, sociais e econômicos, como se constatou dramaticamente com a insurreição frustrada da invasão do Capitólio, quando se intentou obstar a certificação das eleições por um golpe de mão. O cenário dantesco daquele episódio foi registrado ao vivo e a cores, e seu macabro inventário tem sido exposto pela imprensa americana com a identificação dos seus personagens, conformando um quadro assustador de supremacistas brancos, neonazistas, milicianos, uma gente sem eira e beira, inflada pela cólera do ressentimento social, escória cevada com as bênçãos do governante do país.

Conduzir essa transição demanda soluções enérgicas e criativas que destravem seu caminho; a primeira resposta contundente foi a do impeachment de Trump, que contou com a aprovação de 10 votos de representantes republicanos, e as que devem ser apresentadas por Biden em seu discurso de posse no próximo dia 20, em nome do que ele sustenta serem os remédios para a cura da alma americana da doença do trumpismo que teria posto em risco os valores fundacionais da sua sociedade.

Tal como testemunha o caso brasileiro, mais do que uma patologia própria aos EUA o trumpismo se constituiu em um sistema. Sua derrocada importará em efeitos de dominó nos países que integravam sua constelação, entre os quais o Brasil; contudo, a necessária admissão dessa nova condicionante da política brasileira, bem longe de recomendar uma postura quietista, de cega confiança de que a mudança no estado de coisas da nossa realidade possa provir do mundo exterior, deve servir de estímulo aos esforços de erradicação do trumpismo tupiniquim.

O princípio da realidade nos aconselha a constatar as dificuldades políticas e sociais que se antepõem a esse necessário e inafastável empreendimento diante da gravidade das circunstâncias a que estamos expostos. Mas, em que pesem as restrições, inclusive as impostas pela pandemia que dificulta os encontros e as mobilizações no espaço público, são necessários os primeiros passos na longa marcha que se tem pela frente, pois não se pode dar as costas à fortuna que nos alicia para a ação. Caso contrariada por um ator surdo às suas mensagens, ela pode nos entregar à nossa própria má sorte com o resultado nefasto de prolongar o abjeto governo que aí está.

A tragédia amazônica, se permanecermos inertes, será o destino de todos se nos faltar o alento para a reconquista do que nos tem sido subtraído pelo governo Bolsonaro em suas práticas demofóbicas e antidemocráticas. A investida das forças democráticas, na hora atual, deve ter como objetivo principal a defesa da vida e de todas as instituições da área da saúde que se empenham contra a orientação genocida imposta pelas autoridades governamentais, ora representada pela bizarra inépcia do ministro Pazzuelo.

Nessa direção, o movimento ofensivo deve transcorrer nas esferas institucionais, incluído o poder judiciário, com ênfase especial no Congresso, a que não pode faltar o recurso ao impeachment de Bolsonaro, principal responsável pela catástrofe sanitária do país, movimento a ser respaldado pelas agências da sociedade civil por meio de manifestos, panelaços e do que mais estiver à mão.

Cassandras nos aconselham a não partir para o mar alto e nos relembram dos políticos liliputianos com que contamos, mas não nos vem de João Doria, governador de São Paulo, de perfil e robusto histórico conservador, a qualificação de Bolsonaro como facínora? Não se faz política sem alma, remoendo cálculos intermináveis de avaliação de forças, esperando dos céus uma chuva que não vem, pois sempre chega a hora do hic Rhodus hic salta. Pois ela chegou. Já contamos mais de 200 mil mortos, basta, fora.

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Sociólogo, PUC-Rio



Fonte: Especial para Gramsci e o Brasil.

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