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Dois mundos fraturam Gramsci

Adelson Vidal Alves - Julho 2022
 


Álvaro Bianchi. Gramsci entre dois mundos: política e tradução. São Paulo: Autonomia Literária, 2020.

Antonio Gramsci é autor de leitura complexa, sobretudo por conta das condições em que escreveu sua obra maior, preso em cárcere fascista. Sua produção teórica é conhecida em artigos e publicações jornalísticas e de opinião, mas também, e principalmente, nos apontamentos que fez como prisioneiro de Benito Mussolini, quando produziu escritos fragmentários registrados em cadernos escolares que tratavam de temas que iam da literatura até a política.

O comunista sardo, por isso, recebe constantes e plurais interpretações de sua obra, de modo que cada nova publicação traz um aspecto de renovação. Claro, nem toda a bibliografia apresentada em torno do autor é de qualidade, visto que seus adversários teóricos buscam na maioria das vezes fazer uma caricatura. Percebe-se isso em setores da extrema-direita e até da extrema-esquerda.

Gramsci entre dois mundos, neste campo de pesquisas, traz aspectos positivos, revela questões metodológicas e também de compreensão teórica sobre o pensamento político de Gramsci. Mas falha, até de modo grosseiro, ao nos oferecer um rosto gramsciano estranho aos que, há algum tempo, encaram aquele pensador como teórico das sociedades modernas.

Seja na academia, seja no ambiente político (e até partidário), Gramsci é um nome que provoca calorosas discussões. Em parte, por conta da citada natureza de sua obra, em parte pelo fato de que, tendo sido um teórico que interferiu diretamente na dinâmica da política, acabou por produzir disputas sobre o que seria o "verdadeiro" Gramsci.

Bianchi inicialmente aborda questões relacionadas à nova Edizione nazionale degli scritti di Antonio Gramsci. O autor vê riscos a serem avaliados, a partir do ambiente natural dos escritos e sua relação com o mundo. Há uma comparação entre o momento no qual, segundo Bianchi, houve desinteresse na Itália pela sua obra, e o acolhimento simultâneo em outros países. Na nova edição apareceriam dificuldades de acesso às fontes, a comprometer estudos e pesquisas.

Contrapondo-se, de certa forma, ao esforço da nova edição, Bianchi peca quando cria uma espécie de Gramsci periférico. Ao falar de um bisonho "Mezzogiorno tropical", ele busca na geografia política italiana uma metáfora para um Gramsci do mundo atrasado, de países ou regiões em que o desenvolvimento social se deu através das mudanças "por cima". Com isso se altera ou mesmo se perde a dimensão de Gramsci teórico do Ocidente, a saber, das sociedades complexas e avançadas.

Bianchi aparentemente opta por trazer Gramsci para o "Oriente", isto é, para a periferia, em que prevaleceria o teórico da "guerra de movimento", ou seja, o mundo das insurreições, tal como vemos no ambiente da Revolução Russa de 1917. Sugere-se, portanto, uma percepção de Gramsci diferente daquela apresentada por grande parte dos estudiosos, ou seja, de um intelectual comunista que trabalhou em um momento de ruptura histórica e foi capaz de renovar a teoria marxista como proposta para um novo tempo. O Gramsci de Bianchi é uma construção particular e bastante distorcida, que parece obedecer a uma tentativa de conversão ideológica e política das percepções ou mesmo intenções do pensador sardo. Assim, não emerge o Gramsci real, aquele que tem interesse para as forças democraticamente modernas; ao contrário, ressurge o Gramsci revolucionarista, que só pode prevalecer no mundo em atraso.

Bianchi dedicou os primeiros capítulos à apresentação dos principais verbetes, assim como a um importante resumo de alguns passos de Gramsci na Universidade de Turim. Há detalhes até mesmo sobre o currículo que estudou, bem como sobre os professores com quem se relacionou. Estes aparecem como parte fundamental da sua biografia e da formação intelectual. Já a breve apresentação dos conceitos mais importantes nos coloca diretamente em contato com a cabeça do político-filósofo. Em se tratando de um pensador tão particular, essa introdução é fundamental.

Bianchi também dedica algumas páginas à questão do método filológico na interpretação dos escritos (a filologia é o estudo dos textos e seus aspectos históricos e literários). Questões metodológicas são importantes e, no caso particular, fundamentais. A questão é que o leitor mais interessado na teoria política, e atraído por uma caracterização histórica direta e objetiva, pode se sentir desanimado em seguir a leitura. No entanto, o trabalho de Bianchi tem a virtude de fatiar aspectos integrados, sem comprometer a leitura ordenada dos capítulos. Os que pretendem o Gramsci político e teórico cultural propriamente dito podem pular o capítulo.

Um elemento extremamente importante na obra gramsciana é o papel dos intelectuais. Bianchi destaca a construção dos estudos culturais logo nos primeiros momentos do cárcere. Contando com a ajuda de Piero Sraffa, responsável pela compra dos livros usados em parte dos seus estudos, e também da cunhada Tatiana Schucht, o trabalho de pesquisa do agora prisioneiro se desenvolve a partir de leituras envolvendo a cultura italiana, sobretudo os escritos do filósofo Benedetto Croce.

Neste capítulo, novos aspectos biográficos aparecem como pano de fundo da situação em que se encontrava Gramsci diante da insalubridade do cárcere. Ele viria a sofrer graves problemas de saúde e perderia a vida em consequência das condições sanitárias que o atingiram em cheio enquanto esteve preso.

O estudo sobre Croce é conhecido e tem papel de destaque nos Cadernos, mostrando o caráter sistemático pensamento gramsciano. Bianchi insistirá, no entanto, que a obra carcerária carece de sistematização, vindo a ter um caráter predominantemente fragmentário.

A Revolução Russa e seu caráter socialista recebem tratamento significativo em Bianchi. Na verdade, na nova formulação do marxismo de Gramsci, iniciava-se a construção de conceitos importantes, como "Oriente" e "Ocidente", que ocupam função imprescindível. A tomada abrupta de poder pela via do assalto ao Estado sai de cena para que a luta político-cultural pela hegemonia ganhe papel destacado. Mais uma vez, aparece o teórico extremamente ligado à busca de uma nova cultura de caráter socialista. Aqui deve se compreender que o autor sardo irá desenvolver, no seu percurso teórico, conceitos para uma nova compreensão das formações econômico-sociais do capitalismo, o que veremos a seguir, é um ponto frágil na argumentação de Bianchi.

O capítulo que trata do Brasil traz, com pouquíssimas novidades, o debate em torno da contribuição de categorias gramscianas para a interpretação da nossa realidade. Gramsci olhou pouco para nosso País, assim como para a América Latina, resumidos como a parte de um mundo em luta contra o atraso histórico. Temos aqui o "Gramsci europeu", que, mesmo com sua mentalidade cosmopolita, não perdeu certa característica de homem do seu tempo e espaço. Além disso, devemos relembrar as condições de escrita dos Cadernos, apesar do caráter universal do pensamento subjacente.

Como era de esperar, neste capítulo Bianchi concentra-se no conceito de revolução passiva, visto que o Brasil é o país por excelência das transformações feitas pelo alto. A discussão em torno de dois grandes nomes do pensamento social, como Carlos Nelson Coutinho e Luiz Werneck Vianna, é a marca de um debate que ofereceu interpretações do Brasil alternativas às prevalecentes, formulações capazes de influenciar decisões (hoje tidas como equivocadas) de um ator político importante, como foi o PCB. No fim, a evolução da influência gramsciana, narrada por Bianchi, oferta chaves explicativas da formação brasileira, destacando momentos históricos, como a era Vargas e a chegada do PT à presidência.

O livro traz algumas novidades, com linguagem técnica mais próxima de quem está inserido no terreno atual das pesquisas, ainda que também possa contribuir para a aproximação do público leigo de pontos consagrados historicamente na vida e obra do fundador do PCI. Pode ser elogiado por ser mais uma contribuição bibliográfica sobre autor tão importante, mas é preciso apontar limitações e equívocos. Tem originalidade, mas passa longe de ser uma revolução nos estudos gramscianos. Há obras bem mais completas, como Vida e pensamento de Antonio Gramsci, de Giuseppe Vacca, e O jovem Gramsci, de Leonardo Rapone. Além disso, a reorientação do Gramsci teórico das sociedades ocidentais em direção ao que está ultrapassado é pura distorção. O livro tem méritos e demonstra virtudes no plano da divulgação, mas se compromete em aspectos da política e mesmo no julgamento dos benefícios de novos esforços metodológicos.

Nos seus posicionamentos introdutórios, o livro é bastante provocativo na percepção do papel da democracia. Falta aí uma afirmação decidida de que a democracia é um elemento de generalização da esfera pública com vistas a uma ampla articulação universalizante que poderia substituir a revolução passiva, vista não como um programa político, mas fenômeno que resulta das pressões populares e dos enfrentamentos entre os de cima e os de baixo. A democratização precisa ser compreendida e defendida como triunfo civilizatório, como instrumento de alcance cosmopolita e universal. Bianchi não faz isso.

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Historiador, pós-graduado em História Contemporânea

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Fonte: Especial para Gramsci e o Brasil

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