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A "dissidência" de Bresser Pereira

Gildo Marçal Brandão - Fevereiro 1999
 

Será que baixaram o "centralismo democrático" no governo federal e a corrente minoritária está terminantemente proibida de externar sem subterfúgios suas diferenças em relação ao ultraliberalismo da política do secretário-geral Fernando Henrique Cardoso e do secretário de organização Pedro Malan?

Faço a pergunta porque foi surpreendentemente criativa a forma que o ex-ministro da Administração e atual ministro de Ciência e Tecnologia, Luiz Carlos Bresser Pereira, encontrou para manifestar a sua -- ao que parece -- profunda discordância da política econômica que vem sendo seguida pelo governo a que pertence. Se o calendário não me provasse o contrário, pensaria que estávamos de volta aos tempos da ditadura, quando os opositores do regime precisavam usar uma linguagem elíptica para enganar a censura e os leitores tinham de aprender a ler nas entrelinhas. Ou então, com mais propriedade, dado que o homem faz parte do governo e do partido dirigente, diante de uma daquelas manifestações de guerrilha intelectual que os comunistas não-stalinistas eram obrigados a lançar mão nos tempos do camarada Stalin.

Pois o petardo contra a política econômica em vigor e, sobretudo, contra a postura colonizada dos titulares da área econômica do governo, apareceu quarta-feira passada, dia 10, num artigo intitulado "´Central do Brasil` e o critério nacional", publicado não na Ilustrada, que seria o seu lugar caso se tratasse de um prosaico debate cultural, mas na sizuda página 3 da Folha de São Paulo. O pretexto foi a importância que a mídia, povo e elite vêm dando à possibilidade de que a Academia de Cinema de Hollywood acabe premiando o nosso excelente Central do Brasil, como se precisássemos do reconhecimento do exterior para saber se o que fizemos aqui foi bom ou ruim, certo ou errado.

Sem querer imputar intenções a ninguém, pareceu-me que o ministro está pelas tampas não apenas com o festival de patriotadas e de servilismo "primeiromundista" promovido pela televisão, que se comporta como se ganhar o Oscar fosse a prova acabada de que fizemos direito, digamos assim, o "dever de casa", mas principalmente com esse "complexo de inferioridade cultural" demonstrado por seus colegas de Gabinete, especialmente carentes de um "critério nacional" para julgar as necessidades e a produção do seu próprio país e idiotamente crentes de que "os povos ricos do norte sabem distinguir melhor do que nós o certo do errado, o belo do feio, a verdade do engano".

Criticando a importância que se dá "a instâncias cuja maior legitimidade está em serem estrangeiras" e pondo em dúvida a capacidade do Fundo Monetário Internacional, ou melhor, da Academia de Ciências de Hollywood, para "conferir prêmios que realmente signifiquem alguma coisa", Bresser Pereira passa o seu recado:

"Continuamos muito preocupados em saber como nos vêem lá fora e indignados porque sabem pouco do Brasil e pensam que somos só o país do futebol e do Carnaval. Insistimos em uma política ou em um jogo de construção de confiança (ou melhor, confidence building game, já que nosso interesse é principalmente agradar a Washington, Nova York ou Los Angeles...) em todas as áreas de nossa ação. Para isso, nós nos subordinamos a seus critérios de verdade, justiça e beleza, em vez de tratar de saber o que é verdadeiro, justo e belo para nós. Em conseqüência, muitas vezes cometemos erros fatais e nos subordinamos de forma patética."

Nas entrelinhas, convenhamos, é difícil ser mais claro. A quase extemporânea coragem política do ministro paulista chega ao ponto de falar em "busca de identidade nacional" e de citar, em abono teórico à sua posição, o estratégico conceito de "complexo cultural colonial" de um de seus mestres de juventude, o filósofo Roland Corbisier, que foi um dos principais integrantes do velho e execrado -- pelos seus companheiros peessedebistas, cebrapianos, dependentistas, neoliberais -- Iseb (Instituto Superior de Estudos Brasileiros), dos anos 50.

"Mas será que estou de volta aos tempos do velho nacionalismo?" --, apressa-se a esclarecer Bresser Pereira. "De forma alguma. Sei dos enormes interesses comuns que temos com os países desenvolvidos; sei que o jogo que há entre eles e os países em desenvolvimento tem soma maior do que zero; não aceito velhas teses sobre o imperialismo. Quero que o Brasil participe desse grande mundo, aprenda com ele, seja competitivo na economia e na cultura."

E complementa:

"Tenho, porém, imensa dificuldade em adotar um critério estrangeiro para ações e avaliações. Nosso critério há de ser nacional. Precisa partir de nossa realidade e das nossas necessidades. Deve considerar os valores universais e não pode prescindir da participação de especialistas do exterior. Mas não pode se subordinar a avaliadores ou a critérios que não sejam os nossos."

"Nada garante que, usando nossos critérios, tomemos as decisões mais acertadas, produzamos a melhor cultura, a melhor ciência, adotemos as melhores políticas públicas. Podemos, facilmente, também errar. Mas é melhor errar a partir do nosso julgamento do que subordiná-lo a terceiros."

É o caso de dizer: bravo ministro! Só falta agora formalizar a "dissidência" e dizer ao presidente que...

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Gildo Marçal Brandão é professor do Departamento de Ciência Política da USP.



Fonte: Diário do Grande ABC, 11 fev. 1999.

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