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A IGS "no mundo grande e terrível, e complicado"

Giorgio Baratta - 1998
 

1. Pré-história

Em agosto de 1988, nas vésperas da apresentação do filme de Gianni Amico, Gramsci, l’ho visto così, no Festival bolonhês de L’Unità, Valentino Gerratana, Joseph A. Buttigieg, Cornel West, Frank Rosengarten e Giorgio Baratta se esforçam em Roma para a constituição de uma International Gramsci Society.

O projeto é o fruto de uma série de encontros que, no contexto ou à margem de manifestações realizadas em Hamburgo, Londres, Roma, Urbino, Nova Iorque, entre 1985 e 1987, haviam levado à convicção de que - encerrada a hegemonia italiana e togliattiana na história da fortuna de Gramsci - se haviam determinado ao mesmo tempo um vazio, que devia ser preenchido, e uma plenitude, informe mas explosiva, à qual valia a pena dedicar alguma atenção tanto organizativa quanto teórica.

A impressão forte, ainda que vaga, que acompanha estes primeiros esforços de construção associativa, é que o pensamento de Gramsci, numa mescla fecunda de andamento clássico e de vitalidade moderna, fornece a estudiosos de tradições e de problemáticas absolutamente diversas um terreno de identidades surpreendentes e fascinantes. Como se através de Gramsci se pudesse realizar hoje a verificação, em nível planetário, da verdade profunda do fragmento de Heráclito: "Os despertos têm um mundo uno e comum, mas entre os que dormem cada qual se volta para o seu próprio".

Serão talvez os intelectuais de esquerda, hoje, os adormecidos?

A impressão é que Gramsci nos estimule a "sair do sono dogmático" e a redescobrir... o mundo, ou - traduzindo para nosso contexto uma sua categoria peculiar - a enfrentar a dimensão de uma política e de uma cultura "internacional-populares".

No encontro gramsciano de Havana em 1987 (que deu vida à primeira "cadeira" de estudos gramscianos no mundo), se levantaria uma objeção de caráter político-cultural com relação ao título em inglês de uma associação, como a nossa, que busca o caminho de um "novo internacionalismo". Na época de sua criação, no entanto, não havia surgido a menor dúvida: tão fortes eram não só a exigência de um distanciamento em relação à redundância "italiana" do gramscismo tradicional, mas também a ausência de preconceitos, que tornavam quase natural o uso - não sem uma pitada de ironia - da língua mundialmente hegemônica na tentativa de "recomeçar com Gramsci", o grande crítico do americanismo.

Este é um exemplo circunscrito, mas significativo, dos problemas e contradições reais que decorriam e decorrem objetivamente do caminho de uma gramsciana Society.

Em apêndice aos Anais do encontro organizado por Domenico Jervolino e Andrea Catone para o Cipec de Roma no outono de 1987, dedicado a "Gramsci e a crítica do americanismo", foi publicada uma carta aberta - "Rumo à International Gramsci Society" -, cuja seção inicial vale a pena reproduzir integralmente:

Continuar com Gramsci.

O cinqüentenário da morte de Antonio Gramsci foi caracterizado - talvez pela primeira vez na história de sua ´fortuna` - por uma série simultânea verdadeiramente impressionante de manifestações, encontros, iniciativas editoriais em quase todas as partes do mundo. Não é certamente um acaso que tenha sido iniciada a tradução integral dos Cadernos seja nos EUA, seja na URSS. Mas o que surpreende é a espontaneidade da expansão da presença de Gramsci em tantos países, que só pode atestar a universalidade de seu pensamento. É claro que assim surge a exigência de continuar os estudos gramscianos, dada também a amplitude e a fluidez dos contatos e ligações que se estabeleceram entre os estudiosos de proveniência muito diversa nos últimos dois anos.

Como se pode caracterizar a originalidade e a força de muitas destas iniciativas?

‘Libertar Gramsci’, descobrir as grandes potencialidades ainda inexpressas de sua obra e de seu pensamento para a compreensão e a análise do presente: evidenciou-se claramente que a atualidade singular de Gramsci transcorre numa direção até diversa dos itinerários habituais do gramscismo tradicional.

Antonio Gramsci surge não somente como o grande intelectual e o original teórico, mas também como o dirigente comunista que, na dramática porém riquíssima condição política e cultural dos anos 20 e 30, soube delinear sem deturpações nem atalhos um percurso de longo, e talvez longuíssimo, período para o advento e o desenvolvimento do socialismo. Sob um ponto de vista mais estritamente teórico, Gramsci, tão atento às particularidades nacionais e regionais, se apresenta hoje como o primeiro grande crítico marxista da moderna civilização de massa e um genial intérprete do ‘sistema mundo’, isto é, daquele complexo sistema de interdependências estruturais que caracteriza no século XX nosso planeta.

Façamos uma pergunta: por que não continuar, além das festividades ligadas aos aniversários, este fecundo intercâmbio de idéias sobre um Gramsci que faz discutir espontaneamente e vivamente em muitas partes do mundo, sobre um Gramsci que permite traçar uma trama comum de conceitos e de idéias, que consegue promover um terreno de encontro e comunicação de culturas diversas?

Mas como, de que forma continuar?

2. Além de 89

A constituição oficial da IGS aconteceu, entre Roma e Nova Iorque, no perído ligado ao colapso da União Soviética e do "socialismo real"; daquele mundo, em suma, nascido quando Gramsci viveu, operou e sofreu.

Uma etapa importante é o encontro internacional sobre "Gramsci no mundo", realizado em Formia em outubro de 1989 por iniciativa da Fundação Instituto Gramsci de Roma. É um momento de grande harmonia na "casa" gramsciana italiana (submetida mais tarde a inúmeros tormentos), que deixa um precioso patrimônio de memória unitária ao qual é justo vincular o espírito com que surgiu e ainda pretende operar a International Gramsci Society.

"Como, de que forma continuar com Gramsci?" - perguntava-se há mais de dez anos.

A atualidade desta pergunta demonstra o vigor de um pensamento, de uma obra, de uma imagem - a do intelectual sardo cidadão do mundo - que superou de modo surpreendentemente fluido e produtivo o tremendo divisor de águas de 1989.

Por que é assim, e o que isto comporta em relação à natureza e às tarefas da IGS?

Há um ponto da carta de 1987, já citada, que pode revelar-se esclarecedor com relação a uma tal pergunta.

Um objetivo fundamental da proposta de "associação internacional" é formulado como a exigência de "recolher todo o material que se está produzindo em nível internacional sobre os estudos e os usos de Gramsci; colocamos aqui lado a lado os termos ‘usos’ e ‘estudos’, tendo verificado, por exemplo nos Estados Unidos e na Grã-Bretanha, que algumas das mais estimulantes e inovadoras contribuições sobre Gramsci derivam da utilização de sua obra e de seu método de análise para a compreensão e o aprofundamento dos fenômenos atuais".

Para usar uma expressão cara a Gerratana, aqui se contém a consciência de que a herança de Gramsci, além e ainda mais do que na qualidade ideológica essencial de seu pensamento - que o liga a Marx e aos clássicos do movimento operário, de Lenin a Togliatti -, está na lição de método que ela implica e que enraiza sua força no que ele chamava de uma "filologia viva", isto é, na vontade de não negligenciar nunca o nexo entre particular e universal, entre experiência e "generalização", entre concreto e abstrato, assim como entre passado e presente, entre espaço e tempo, entre indivíduo e mundo.

Nesta perspectiva a prosa de Gramsci, sóbria e severa mas não destituída de poesia, peculiaríssima mas sempre passível de tradução, empenhada cientificamente mas a-disciplinar, prosa ao mesmo tempo literária e marcadamente política, oferece um antídoto poderosíssimo contra o solipsismo de massa do "pensamento único", uma lição de metodologia comunicativa, de "filosofia democrática".

Com este ânimo, a aspiração de "promover, favorecer e coordenar" iniciativas de estudo e de "uso" (não instrumental!) do pensamento de Gramsci leva ao nascimento da IGS - International Gramsci Society.

3. A vida da IGS

L´Ordine nuovo - escrevia Gramsci nos Cadernos - aspirava a introduzir "um americanismo adequado às massas operárias". Também a IGS reivindica, e pratica, um "seu" americanismo, adequado aos novíssimos "tempos modernos". John Cammett, o primeiro presidente da IGS - com seu precioso personal computer e sua impessoal, implacável network de centenas e milhares de referências bibliográficas -, é que estabeleceu o clima "americano" da Society.

Nuestra América - para usar uma expressão do grande escritor cubano Alejo Carpentier - se revela catalisadora eficaz de energias difusas e dispersas nos mais diversos países do mundo. Mas "América" também significa Chile, Cuba, Brasil... e também vive nas culturas "afro-americanas". Destes países e destas experiências provêm contribuições e impulsos importantes na direção do nexo, essencial para uma iniciativa de perfil gramsciano, entre alta cultura e cultura popular, entre lutas hegemônicas no coração do desenvolvimento e crescimento de elementos de autonomia nos grupos sociais subalternos, entre Sul e Norte do mundo.

Órgão unificador, suporte da rede IGS, é desde 1992 a Newsletter que Joseph A. Buttigieg redige com meticulosidade e paixão; ele, na condição de maltês-americano, junto com John Cammett e o italianista Frank Rosengarten, contribui, desde a América do Norte, para modelar uma pedra essencial do mosaico geocultural da associação.

Bem cedo também se evidenciam na IGS o "caráter" japonês, o australiano, o sul-africano, o palestino, o israelense...

Mais complexo, no sentido de uma relação mais difícil entre o momento nacional, o continental e o horizonte planetário, é o "caráter" expresso pelos intelectuais gramscianos dos diversos países europeus, fadados, no entanto, à tarefa iniludível de oferecer uma contribuição ao crescimento necessário de uma esquerda européia.

Desde o princípio, este discurso depara com a "questão" Oriente–Ocidente. Estudiosos, como a soviética e depois russa Irina Grigor’eva e o húngaro Tibor Szabo, chamam a atenção para a necessidade de desenhar, com o compasso gramsciano, o mapa cultural e político de uma nova Europa, capaz de interpretar em sentido progressivo e aberto sua tradição, seus limites, suas relações com o mundo.

4. De Nápoles ao Rio

Em 1995, com a contribuição de personalidades respeitadas como Valentino Gerratana e Aldo Tortorella, de estudiosos mais jovens e mesmo muito jovens, como Guido Liguori, Domenico Jervolino e Serena Di Giacinto, nasceu a IGS–Itália, que se valeu para sua constituição da preciosa hospitalidade da Cidade de Nápoles e do Instituto Italiano para os Estudos Filosóficos.

No Palazzo Serra di Cassano, sede prestigiosa do Instituto Italiano para os Estudos Filosóficos, se desenrolou não apenas, em dezembro de 1966, o congresso de fundação da IGS–Itália mas também, em outubro de 1997, o primeiro encontro–congresso mundial da IGS, cujas intervenções principais e cujo registro integral serão publicados em livro.

1998 se revela um ano, por assim dizer, de reflexão mas também de expansão para a IGS. Desde o Japão, onde se deu com a presença de numeroso público o seminário de Kioto, até o Brasil, onde depois do seminário de Juiz de Fora se deu a criação do site Gramsci e o Brasil - para citar apenas alguns exemplos -, se aprofunda a dimensão articulada e internacional da Society. Por outro lado, depois da experiência de Nápoles - que mostrou e demonstrou o valor gramscianamente imprescindível de "estarmos juntos", como fonte de conhecimento e de criatividade de um "pensador coletivo", por mais que esteja ainda distante no horizonte da história -, a International Gramsci Society estuda as formas de consolidação de seu caráter associativo.

O comitê diretor da IGS, que se reuniu em maio em Paris por ocasião das manifestações pelos cento e cinqüenta anos do Manifesto do partido comunista, analisou projetos em vias de elaboração para 1999, como o seminário sobre "Gramsci e Marx" que a IGS–Itália, por proposta de Giuseppe Petronio, organizará em Trieste, bem como uma iniciativa transnacional sobre "Gramsci e o senso comum europeu". Além disto, assumiu uma decisão importante e árdua: a convocação para o Rio de Janeiro, em setembro de 2001, do segundo encontro–congresso da IGS em torno do tema "Ler Gramsci, ler a realidade".

Gramsci e o Brasil, e também toda a IGS, têm por isto diante de si um intenso caminho por percorrer. A recente experiência parisiense - que em relação ao Manifesto soube restituir, para usar expressão de Fortini, uma "memória viva" - ensina que o segredo do sucesso está hoje na organização telemática de um "congresso virtual permanente" como premissa e preparação do encontro real. Sejam bem-vindos, pois, esforços sérios e generosos para incrementar quantidade e qualidade do site e dos sites IGS.

5. Informações gerais

A International Gramsci Society tem sede em Roma (também sede da IGS–Itália) e em Notre Dame, em Indiana, onde é redigida a Newsletter anual.

O comitê diretor da IGS é presidido por Valentino Gerratana. Vice-presidentes são Giorgio Baratta, Carlos Nelson Coutinho (Brasil), Alastair Davidson (Austrália), Iroshi Matsuda (Japão), Frank Rosengarten (EUA). Joseph A. Buttigieg é o secretário.

Para tornar-se sócio da IGS e poder assim receber a Newsletter, é preciso enviar 30 dólares, anualmente, a um dos endereços aqui relacionados:

Joseph A. Buttigieg
Dept. of English – Univ. of Notre Dame
Notre Dame, IN, 46556 – USA

IGS-Italia
Via della Consulta 50
00184 Roma – Itália



Fonte: Especial para Gramsci e o Brasil.

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