A geopolítica costuma ser uma fonte de interpretação estrábica sobre a Amazônia. Como a região é muito grande, muito diversificada, insuficientemente conhecida e pouco habitada (por causa de áreas ainda isoladas), esse é um espaço intelectual que aceita qualquer especulação, especialmente os desvios conspirativos. Sempre cabe um apetite imperialista no cenário, ele exista ou não, seja potencial ou real. E isso prejudica - e muito - não só o entendimento, mas, sobretudo, o domínio sobre a região, o "como fazer bem" nela. Ficamos sempre atribuindo a culpa ao explorador, especulador, missionário, ONG, etc. É mais agradável, mais oportuno e reconfortador do que enfrentar o problema interno, ainda que nunca deixando de manter um olho vivo sobre o além-mar.
O acadêmico Hélio Jaguaribe reabasteceu esse depósito de conceitos e temores ao escrever na grande imprensa nacional sobre a ameaça de internacionalização da Amazônia, que é um misto de fantasia e realidade. Um leitor atento e bem informado do seu texto concluirá confirmando a máxima de que nada é pior do que a quase-verdade, ou a meia-verdade. Esse tipo de abordagem sobre a Amazônia induz a procurar descobrir o dedo do gigante sem ter na devida conta o próprio gigante.
Num primeiro artigo ("A perda da Amazônia"), publicado na Folha de S. Paulo, Jaguaribe alertou para o "absoluto abandono a que está sujeita a Amazônia", que, consideradas suas dimensões territoriais e riquezas, "é simplesmente inacreditável". Ele está convencido de que, por diversas maneiras, a região "está sendo submetida a acelerada desnacionalização, em que se conjugam ameaçadores projetos por parte de grandes potências para sua formal internacionalização com insensatas concessões de áreas gigantescas - correspondentes, no conjunto, a cerca de 13% do território nacional - a uma ínfima população de algo como 200 mil índios". A esse perigo ele acrescenta "inúmeras penetrações, freqüentemente sob a aparência de pesquisas científicas e a atuação de mais de cem ONGs", que já apresentam "os mais alarmantes dados".
Para dar uma idéia do significado da ameaça, o mestre recorre aos dados costumeiramente citados em ocasiões semelhantes, dando como verdade científica, categórica e absoluta, que só a Amazônia brasileira, "representando 85% da Amazônia total, constitui a maior floresta tropical e a maior bacia hidrográfica do mundo, com um quinto da água doce do planeta, sendo, concomitantemente, a maior reserva mundial de biodiversidade e uma das maiores concentrações de minerais valiosos, com um potencial diamantífero na reserva Roosevelt 15 vezes superior ao da maior mina da África, reservas gigantescas de ferro e outros minerais na região de Carajás, no Pará, de bauxita no rio Trombeta, também no Pará, e de cassiterita, urânio e nióbio em Roraima".
Abordando uma das muitas riquezas da região, que agora tem seu valor incrementado, o intelectual carioca lembra que o dendê, nativo da Amazônia e nela facilmente cultivável, "constitui uma das maiores reservas potenciais de biodiesel. Em apenas 7 milhões de hectares, numa região com 5 milhões de km2 [ou 500 milhões de hectares], é possível produzir 8 milhões de barris de biodiesel por dia, correspondentes à totalidade da produção de petróleo da Arábia Saudita.
Esse destaque foi considerado em maior detalhe em outro artigo, em O Globo de cinco dias depois ("A saída é pela Amazônia"), motivado pela divulgação do relatório do Painel Intergovernamental de Mudanças Climáticas das Nações Unidas. O relatório, assinado por dezenas de cientistas de muitos países, alertou sobre dramáticas mudanças climáticas em curso no planeta, que poderiam a acarretar, muito mais cedo do que até então se imaginava, uma catástrofe ecológica de tamanho planetário.
Por causa da poluição na atmosfera, 77% dela na forma de gás carbônico, causada pela queima dos derivados de petróleo e outros energéticos industriais, a temperatura média da Terra poderia se elevar em 3º (ou, em hipótese mais remota, mais de 6º) até 2100, derretendo geleiras polares e dos altos picos, e elevando o nível do mar.
Esse cenário - tão próximo e tão funesto - está exigindo que a sociedade adote novas formas de produção e de consumo. Uma das recomendações é a substituição dos energéticos atuais por fontes mais limpas e renováveis, como os biocombustíveis e (vejam só) a energia nuclear. Esse novo quadro, da energia verde, colocaria o Brasil num patamar muito mais elevado do que o de hoje, pela sua rica disponibilidade de recursos naturais e sua experiência em fontes alternativas.
Nessa conjuntura, Jaguaribe dá o brado (made in Rio, claro): "Está na hora de uma radical revisão de nosso relacionamento com a Amazônia, que tem sido, até agora, de criminosa desatenção e ameaça, pelo que foi divulgado pelo governo, se converter, insensatamente, numa ainda mais criminosa alienação de toda essa região e de sua gigantesca reserva de recursos naturais".
Para Jaguaribe, "é absolutamente evidente que o Brasil está perdendo o controle da Amazônia", sendo "urgentíssima uma apropriada intervenção federal" na região, especialmente através de "formas eficazes de vigilância da região e de sua exploração racional e colonização". Cita como referência "um importante acervo de dados, contidos em relatórios" entregues à Abin (a agência de informações que sucedeu o SNI). Lamenta que "as autoridades superiores, entretanto, não vêm dando a menor atenção" a esses relatórios.
"Sem prejuízo das medidas neles sugeridas e de levantamentos complementares", considera "indiscutível a necessidade de uma ampla revisão da política de gigantescas concessões territoriais a ínfimas populações indígenas, no âmbito das quais, principalmente sob pretextos religiosos, se infiltram as penetrações estrangeiras". Diz que enquanto a Igreja Católica "atua como ingênua protetora dos indígenas, facilitando, indiretamente, indesejáveis penetrações estrangeiras, igrejas protestantes, nas quais pastores improvisados são, concomitantemente, empresários por conta própria ou a serviço de grandes companhias, atuam diretamente com finalidades mercantis e propósitos alienantes".
Está certo o novo padrasto da Amazônia que o objetivo dessa ação é "criar condições para a formação de nações indígenas e proclamar, subseqüentemente, sua independência - com o apoio americano". Em "última análise" (permitindo-se, contudo, excluir "a eliminação dos índios adotada no século 19 pelos EUA"), o novo guru amazônico vê "duas aproximações possíveis da questão indígena: a do general Rondon, de princípios do século 20, e a atual, dos indigenistas".
Na interpretação jaguaribeana (ou jaguaribista), "Rondon, ele mesmo com antecedentes indígenas, partia do pressuposto de que o índio era legítimo proprietário das terras que habitasse. A um país civilizado como o Brasil, o que competia era persuadir, pacificamente, o índio a se incorporar a nossa cidadania, para tanto lhe prestando toda a assistência conveniente, dando-lhe educação, saúde e facilidades para um trabalho condigno".
Já os indigenistas, diversamente, "querem instituir um jardim zoológico de indígenas, sob o falacioso pretexto de preservar sua cultura. Algo equivalente ao intento de criar uma área de preservação de culturas paleolíticas ou mesolíticas no âmbito de um país moderno". O resultado final, no diagnóstico do acadêmico, "além de facilitar a penetração estrangeira, é converter a condição indígena em lucrativa profissão, com contas em Nova York e telefone celular".
Há, acrescenta o demiurgo, "urgente necessidade, portanto, de rever essas concessões, submetendo-as a uma eficiente fiscalização federal, reduzindo-as a proporções incomparavelmente mais restritas e instituindo uma satisfatória faixa de propriedade federal, devidamente fiscalizada, na fronteira de terras indígenas com outros países".
Já quanto a um plano de produção, em escala internacional, de etanol e biodiesel, "além de urgente estudo, inclusive no que se refere aos futuros consumidores", é preciso ter "um apropriado regime de financiação":
"Asseguradas as necessárias condições de preservação de nossa soberania, um programa dessa natureza abre um amplíssimo espaço para a aplicação de capitais estrangeiros, atraindo-se para a bioalternativa, entre outros empreendimentos, as companhias de petróleo. Importa organizar, dentro de uma conveniente política de conjunto, diversas empresas brasileiras, com adequada participação de capitais estrangeiros, que assegurem o atendimento, em ampla escala, da futura demanda internacional desses combustíveis".
Suspeitar de tudo, indistintamente, sem uma ponderação elucidativa, conforme critérios realmente analíticos, significa não ter certeza de nada. Como ser afirmativo? Não podemos: a culpa é do estrangeiro maquiavélico, perverso, sugador, insaciável, cuja onisciência, onipotência e onipresença anula nossas possibilidades de escrever uma história diferente daquela que ele nos impõe.
Sempre teria sido assim, a julgar pelas sucessivas teorias geopolíticas. Se a Fundação Rockefeller, através da camuflagem do Summer Institute of Linguistics, é quem mais financia ações em tribos indígenas, sobretudo para traduzir-lhes as línguas (e aprisionar-lhes as culturas), por que não fazemos o mesmo e suplantamos os Rockefeller, sem precisar incorporar-lhes os males, por sermos todos brasileiros, irmãos?
Não fazemos porque não queremos gastar o mesmo dinheiro. Somos o país do tal do bloco do Bric (Brasil, Rússia, Índia e China) que menos investe em ciência e tecnologia, sendo que, desse raquítico orçamento, o que cabe à Amazônia é menos do que 1%. E São Paulo, que fica com 39%, quer se achar no direito de definir o que é certo e errado na Amazônia, fazendo quase sempre o errado.
Os estudos lingüísticos do Summer Institute podem servir aos fins evangélicos dos seus promotores diretos (traduzir a Bíblia em todas as línguas), aos negócios da família Rockefeller, aos interesses da corporação econômica americana e às políticas da Casa Branca (ou, mais especificamente, do Pentágono). Um país soberano tem o direito (e o dever) de impedir que a presença dos missionários do SIL seja uma ponta de lança (ou cabeça-de-ponte) desses interesses em território nacional. Mas tentando manter o serviço de utilidade para o próprio país, que é o conhecimento e a tradução de línguas condenadas ao desaparecimento, mas que são, hoje, o único caminho de acesso às informações e saberes produzidos em séculos ou milênios de convivência com a natureza (e com outros povos indígenas), sem a interferência dos europeus (ou "civilizados").
Se as reservas indígenas estão sendo criadas em áreas estratégicas com o objetivo de serem "balcanizadas", criando quistos raciais e étnicos que serão embriões de nações autônomas, a obrigação do governo é instaurar procedimento regular, conforme as leis adjetivas do país, e provar tudo, dando os devidos nomes aos bois. Ficar na desconfiança só faz multiplicar desconfianças, sem levar a uma atitude positiva. Todas as teorias conspirativas têm esbarrado, até agora, num fato: não se conhece nenhuma tribo indígena que se tenha manifestado pela independência como povo autônomo. Nossos índios querem ser bons brasileiros. O governo é que, sem entendê-los e respeitá-los, não deixa.
Sem a cooperação internacional o Brasil não dará o salto necessário para colocar a ciência e a tecnologia à frente do madeireiro, do garimpeiro, do minerador ou da empresa (nacional e multinacional), nem, ele próprio, poderá ocupar a posição de comando que lhe cabe nas frentes pioneiras. Não só por não dispor dos recursos necessários para a tarefa, gigantesca: também por não ter disposição de assumir esse desafio, com todas as suas conseqüências.
Ao invés de simplesmente mandar relatórios para a Abin ou criar romances que materializam as mais inventivas teorias conspiratórias, o governo, que é dono, guardião e gestor da maior das Amazônias do continente, precisa ter musculatura, ossatura e inteligência para convocar cada um dos suspeitos e obrigá-los a se explicar publicamente.
Os dados todos precisam estar à mesa, o mais próximos da verdade científica. Não é verdade que a Amazônia tem 20% de toda água doce identificada no planeta: em sua bacia estão uns 12% da água superficial doce da Terra. É muito (embora uma mínima fração da água total, esmagadoramente salgada), mas é apenas uma estrela no céu de um povo que não sabe manejar água. Pelo contrário: a polui, a assoreia, não a utiliza como caminho saudável. Esse valioso capital é elemento hipotético até que, contando inclusive com a ajuda de bons parceiros, como os canadenses ou holandeses (que têm pouca água doce e por isso a usam tão bem), mudemos a prática desse desperdício e dessa destruição.
É relação infrutífera comparar o "potencial diamantífero na reserva Roosevelt" à "maior mina da África", esta produzindo e aquele ainda na condição (ao menos hoje, depois de combatido o garimpo predatório) de reserva, capaz de atrair todos os interesses, mas sem medição certa. Intelectuais como Jaguaribe listam palavras e números atribuídos à Amazônia sem uma exata noção de grandeza e com pouco compromisso com a realidade, como se fossem pracistas de explicações pré-aquecidas, prontas para aplicação em qualquer situação de fato.
À distância, podem tudo e estão dispostos a tudo. Não consideram, porém, o in situ. Daí haver tantos aprendizes de feiticeiros e tão pouco daqueles capazes de manejar o tal do know-how dos pragmáticos irmãos do Norte. A Amazônia é uma fantasia nessas tábuas da lei, descidas sobre nós, a partir do Sul-Maravilha.
Se não é possível separar o joio do trigo, nem estabelecer parceria em associação verdadeiramente paritária, sob o controle nacional, então que o governo realize, por meios próprios, o que a instituição internacional realizava. Mas, como diria o compositor Noel Rosa: com que roupa? O jeitinho brasileiro não é suficiente. Muito menos a presunção de que Deus nasceu aqui.
Se não tornarmos a Amazônia uma prioridade real, pra valer (e pagar o preço necessário), capaz de nos permitir inibir, condicionar ou redirecionar o evidente interesse estrangeiro pelo conhecimento real e o domínio operativo da (e na) região, vamos continuar a ver visagens ao meio-dia. A Amazônia continuará sob a proteção da soberania nacional, mas terrivelmente empobrecida. Brasileirinha da silva e pobre.
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Lúcio Flávio Pinto é o editor do Jornal Pessoal, de Belém, e autor, entre outros, de O jornalismo na linha de tiro (2006).