Logo no inÃcio de Tropa de elite - o interessantÃssimo e polêmico filme de José Padilha - fica-se sabendo que polÃcia, crime e tráfico fazem parte de um mesmo sistema: entrelaçam-se como fios de novelos gêmeos, corrompem-se e se degradam mutuamente.
Quase de imediato percebe-se também que o entrelaçamento é mais profundo. Nos morros e na cidade, os desejos de consumo, os estilos, a linguagem e os comportamentos sugerem uma ausência de distância social, ainda que seja escandalosamente ostensiva a disparidade de renda, educação e oportunidades entre aqueles mundos unidos pela diluição ética e pelo ofuscamento do futuro.
Os morros retratados no filme são ambientes abandonados, assistidos por uma ONG bem-intencionada, mas não pelo poder público. Jovens burgueses e de classe média compartilham espaços e drogas com jovens pobres, marginais e crianças, misturando de modo louco universos que, na base da sociedade, são incomunicáveis e se rejeitam com veemência. Parece não haver classes naquela "comunidade" unida pelo desejo de sobreviver, de consumir, de "fazer algo" e acontecer, sempre que possÃvel contra o Estado (a polÃcia).
Mas a exclusão, a miséria, a falta de perspectivas explodem por toda parte, a evidenciar um dilaceramento social extensivo. A violência generalizada é seu fermento, a dificuldade comunicacional seu combustÃvel. Não é somente a truculenta e fascista elite da tropa que se revela desqualificada para propor uma saÃda: todos - traficantes, universitários, polÃticos - chafurdam na mesma impossibilidade de ação positiva, dramaticamente abraçados.
Pode-se até dizer que o filme exagera na apresentação da violência, que nos morros também há gente decente dedicada a alcançar patamares consistentes de dignidade e sobrevivência. Que a polÃcia não é só aquilo que se vê, uma corporação corroÃda pela corrupção, pelo despreparo e pela luta interna.
Como toda obra de arte, Tropa de elite dá margem a muitas interpretações. Pode ter fascinado alguns brucutus de plantão e seduzido aquela parcela da população que acredita na lei do cão, mas não deixa ninguém indiferente. Ao desnudar uma situação lancinante, explosiva, faz um irrecusável convite à reflexão. Incentiva-nos a pensar no Brasil atual, onde o moderno está ao mesmo tempo radicalizado (repleto de tecnologia, individualizado e desinstitucionalizado) e aprisionado pela condição periférica do paÃs, que nos mantém com boa parte do corpo submerso na pobreza, na ignorância e no atraso econômico-social.
O entrelaçamento destas duas "lógicas", a da modernidade radicalizada e a da condição periférica, a do celular e a da miséria, dá cores ao Brasil atual. Voracidade produtiva e consumista, desejo contÃnuo de exposição, diversão e velocidade, conectividade fácil, desengajamento, fuga do Estado e da polÃtica - são fenômenos derivados do moderno que se radicaliza. Vida que escoa pelos dedos, sem direção e sem formato estável: "lÃquida", na sugestiva linguagem metafórica de Zigmunt Bauman.
A condição periférica, por sua vez, nos encharca de pobreza, de violência, de luta insana pela existência, de indigência e não-reconhecimento, de massas subalternizadas, vistas como ameaça e problema, não como fato humano ou gente. A interpenetração das duas condições produz um tipo de vida: dinâmica, frenética, desigual, efêmera, inevitavelmente insegura e perigosa. Se a inovação tecnológica infrene apaga as distâncias de tempo/espaço, ela ao mesmo tempo polariza a convivência, separando as pessoas, por exemplo, em incluÃdos e excluÃdos digitais ou informacionais. Ao passo que, para uns, drogas e celulares são meios de vida, para outros são fontes de prazer e entretenimento.
Encontramos traços deste modo de ser por onde quer que caminhemos. Ou será que as dificuldades e incertezas da escola e da educação têm a ver somente com fracasso pedagógico ou despreparo dos professores? A longa e interminável crise do Congresso seria por acaso o resultado exclusivo da mediocridade da classe polÃtica? E o que dizer da condição falimentar dos partidos? Podemos nos contentar em atribuir as seguidas tragédias (aéreas, rodoviárias, urbanas, hospitalares) de nossos dias somente aos "sistemas" e a seus operadores?
A modernidade radicalizada periférica está pulsando em nossos nichos sistêmicos e existenciais. A vida lÃquida, por aqui, é ainda mais informe. Não necessitarÃamos de filmes como Tropa de elite para saber disso. Bastaria olhar para os ambientes em que julgamos estar nossas maiores virtudes: nossas instituições, da famÃlia aos sindicatos, passando pelas escolas e pelos tribunais, pelo mercado e pelo Estado. Tudo parece meio desfocado e fora de controle: em transição acelerada, recomposição e "sofrimento".
Há coisas novas despontando, coisas velhas ruindo com estardalhaço, outras fenecendo em silêncio. O tom dominante é de dúvida, medo, incerteza e insegurança, mas não há como desprezar a potência positiva daquilo que emerge, nem achar que todos os cidadãos se deixaram contaminar por igual e não se orientam mais por nenhum valor cÃvico (a honestidade, a decência, a integridade) ou aposta polÃtica.
A questão, como sempre, está na contradição e na ambivalência. Aquilo que se mostra mais "emancipador" - a liberdade de escolha, a mobilidade, a democratização dos relacionamentos - também traz consigo novas injustiças e a reiteração de problemas já conhecidos: vantagens e oportunidades desigualmente distribuÃdas, hierarquias e assimetrias de novo tipo, exclusões inaceitáveis.
A época é estranha, turbulenta, difÃcil de ser decodificada. Ela está a nos dizer que problemas e conflitos não podem ser resolvidos por medidas unilaterais ou discursos fáceis. Dependemos sempre mais de pensamento crÃtico articulado e de polÃticas inteligentes, contÃnuas, democráticas, que valorizem as pessoas e produzam resultados sustentáveis.
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Marco Aurélio Nogueira, professor de Teoria PolÃtica da Unesp/Araraquara, é autor, entre outros, de Em defesa da polÃtica (2001) e Um Estado para a sociedade civil (2004).