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A saga operária no romance de Ruffato

Jorge Sanglard - Outubro 2008
 

Luiz Ruffato. O livro das impossibilidades. Rio de Janeiro: Record, 2008.

Luiz Ruffato buscou inspiração no poema "Novíssimo Job", de Murilo Mendes (1901-1975), ao estabelecer o título Inferno provisório para a saga do proletariado brasileiro nos últimos 50 anos, que chega ao quarto volume com o lançamento de O livro das impossibilidades. Ao articular em sua obra personagens da periferia da periferia, oriundas do Beco do Zé Pinto, em Cataguases, o escritor mineiro radicado em São Paulo transita num universo marcado pela diversidade das mazelas brasileiras, pela exclusão social, por remorsos e rancores, além da falta de perspectivas de uma vida melhor.

Murilo Mendes escreveu: "Prefiro o inferno definitivo que a dúvida provisória", mas Ruffato trabalha com o sentido da utopia, garante que, se não acreditasse em mudanças, nem escreveria e optou por mergulhar na provisoriedade do inferno cotidiano para traçar os caminhos e os descaminhos de suas personagens nas últimas cinco décadas. E assim enfrenta o processo de migração do interior rural mineiro para as cidades industriais de Minas, Rio e de São Paulo. Com seus sonhos e suas frustrações, suas lutas e suas derrotas pessoais; enfim, com todas as suas impossibilidades. E Rufatto constata: "Ousado e arriscado é ser pobre no Brasil".

Dos retalhos de vidas malvividas, desiludidas, Ruffato tece um mosaico denso e vigoroso neste novo volume. O desafio de descrever seres humanos em sua complexidade é, para o escritor, o instrumento de uma reflexão sobre a precariedade da vida humana em qualquer circunstância. Ao inverter a máxima contida no verso de Murilo Mendes, o autor deixa claro que a opção foi possível por não se tratar de uma abordagem dentro do ambiente do catolicismo, mas sim de um mundo onde a própria religião está posta em questão. Na verdade, para Ruffato - considerado um dos expoentes e um renovador da prosa contemporânea brasileira -, inferno provisório é a situação da própria sociedade brasileira contemporânea, fruto de sucessivos movimentos que nunca levaram em conta a valorização do indivíduo ou o ponto de vista do cidadão.

O período escolhido para criar a sua visão desta saga do proletariado brasileiro, a partir da segunda metade do século XX, é exatamente o momento em que o país transita de uma sociedade predominantemene rural para uma sociedade pós-industrial de periferia. E todas as contradições desse processo refletem-se na busca de Ruffato pela expressão e pela explicitação de um ponto de vista a respeito dessa realidade. A partir de uma meticulosa recriação artística e da construção de uma prosa renovada, e evidenciando uma clara tomada de posição, o autor mostra que o compromisso de sua literatura é com a pura arte, mas focada continuamente na realidade que nos cerca e, às vezes, sufoca.

Segundo o escritor, a literatura não é, e não pode ser nunca, uma mera cópia da realidade, pois essa idéia, além de reacionária, não propõe mudanças, simplesmente capta a realidade como se ela fosse única e reduzível. Assim, ao aprofundar neste novo livro a fragmentação da forma utilizada nos outros três volumes de Inferno provisório, Ruffato radicaliza a intenção de reconstruir, na ficção, a precariedade da sociedade brasileira, entre meados do século XX até estes primeiros anos do século XXI, onde tudo ainda está por fazer na construção da cidadania do povo brasileiro.

O sonho de abandonar a periferia da cidade pequena, na perspectiva de melhorar de vida na grande cidade industrial, permeia o cotidiano de cada personagem que, passado algum tempo, ao olhar para trás, se questiona ou se conforma a respeito das escolhas feitas ou desfeitas. Neste quarto volume, as personagens da saga transitam entre 1968, 1969, 1970, 1972, 1975, em meio ao endurecimento do regime militar, a conquista do tricampeonato mundial de futebol e a construção da Ponte Rio-Niterói. Avançam pela década de 1980 até chegar ao século XXI. Deixam o século XX e entram no século XXI assombradas com a falta de esperança e de perspectivas. Fraquezas amargas, medos permanentes. Vidas tragadas pelo destino, com seus temores e incertezas.

O livro das impossibilidades é articulado em três histórias, "Era uma vez", "Carta a uma jovem senhora" e "Zezé & Dinim (sombras de um triunfo de ontem)". A primeira passada entre Cataguases e São Paulo, a segunda em São Paulo e a terceira no eixo Rio-São Paulo-Cataguases. Todas marcadas pelos dilemas da migração interna por este imenso e desigual Brasil. Como as histórias de Zezé e de Dinim, quando passam a ser narradas em colunas lado a lado, que convergem em sonhos que dão em nada, desfeitos. A vida como um labirinto, onde uma escolha pode levar a um pesadelo.

Luiz Ruffato reafirma, assim, o compromisso e a opção estética com a trilha estabelecida para a longa trajetória iniciada com Mamma, son tanto felice, desenvolvida em O mundo inimigo e em Vista parcial da noite, e que chega, agora, ao quarto volume com este O livro das impossibilidades. Ao todo, o projeto prevê cinco volumes. A literatura, a arte de maneira geral, para o escritor mineiro, não deve ser nunca a favor: "A literatura se faz pela subversão", enfatiza. E adverte ainda que a arte deve se posicionar como oposição, como contrariedade, mas sempre visando a construção de uma utopia. E provoca: "A literatura brasileira, em sua grande parte, sempre esteve ligada ao poder, à manutenção do poder".

Periferia, centro da questão

O autor mineiro extrai das entranhas da realidade da classe média baixa brasileira, do trabalhador, do proletariado, todas as nuanças de seu cotidiano, quase sempre sem esperança. Sem recorrer à forma usual do romance, nascido no século XVIII para servir a uma descrição do mundo a partir dos interesses da burguesia, Ruffato se apropria de uma forma que, embora não esteja sendo inaugurada agora, serve aos seus propósitos literários. A forma fragmentada adotada pelo escritor pode até não ser enquadrada nos padrões estéticos tradicionais como "romance", mas também não é uma coletânea de contos.

Enfim, o escritor subverte a forma e articula sua escrita ao inserir fragmentos e ao construir um texto instigante, que desafia o leitor à reflexão. Assim, quando iniciou o projeto de escrever sobre a classe média baixa brasileira - o trabalhador, o proletariado -, Ruffato percebeu logo que era essencial articular algo novo, que rompesse com a estrutura convencional e oferecesse sustentação a esta nova perspectiva de contar a história dos que quase nunca têm vez ou voz na sociedade brasileira.

O novo romance proposto por Luiz Ruffato rompe limites e traz para o centro da questão a dramática vida cotidiana da periferia, dos sem voz e sem vez. Afinal, neste início de século XXI globalizado, o que é centro e o que é periferia? O ensaísta Affonso Romano de Sant’Anna está propondo uma revisão do século XX, de todos os sonhos e equívocos, para que o Brasil possa entrar de fato no século XXI.

A forma da ruína perpassa a construção dos quatro volumes editados da saga Inferno provisório, e o escritor já chegou a revelar que não é ele quem não consegue construir uma literatura com começo, meio e fim, como os romances tradicionais, mas a precariedade da sociedade a que pertencemos é que não consegue construir algo com começo, meio e fim. Essa constatação feita pelo escritor parte de um verso de Caetano Veloso, que diz mais ou menos assim: "Aqui, o que está em construção já é ruína".

Uma história de violência

A questão da violência, que passou a incomodar a alta classe média nos últimos anos, segundo Ruffato, sempre existiu com bastante clareza no país. Só não percebeu quem não quis. Afinal, declara enfático: "A nossa história é a história da violência. Desde quando os portugueses chegaram ao Brasil, submetendo os índios à força, e mais tarde, com a introdução da escravatura na lavoura, a violência é parte do cotidiano brasileiro".

No entanto, enquanto essa violência esteve nos guetos pobres dos campos e das cidades, o país cultivou a imagem do brasileiro cordial, cordato, pacífico. Na opinião do escritor, os brasileiros foram submetidos à ditadura em toda a sua história: "Praticamente todo o século XIX sob o Império, depois sob a ditadura positivista da República Velha, depois sob Getúlio Vargas, depois sob os militares. Ou seja, respiramos no Brasil os ares da violência e do autoritarismo".

Por não encarnar o estereótipo do escritor brasileiro, branco, de classe média e bem educado, Ruffato vivenciou a necessidade de superar inúmeros desafios, como qualquer um que tenha nascido branco, mas na periferia da periferia. E reconhece que não é o primeiro escritor brasileiro filho da classe média baixa, mas, diante da crueldade da sociedade brasileira, impermeável à mobilidade social - "já que grande parte dos intelectuais oriundos do proletariado sempre preferiu esquecer seu passado para ser aceita em seu novo universo" -, procura trazer sua experiência de vida para a literatura e, certamente, vem daí a força e a veracidade do que está retratado nos quatro volumes da saga Inferno provisório.

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Jorge Sanglard é jornalista, pesquisador e organizador da antologia Poesia em Movimento.



Fonte: Especial para Gramsci e o Brasil.

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