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Legados da Revolução Russa e dilemas do Estado socialista

Luis Fernandes - Fevereiro 2009
 

No âmbito deste Seminário, o primeiro legado da revolução soviética que quero destacar diz respeito à própria existência do Partido Comunista do Brasil, que nasceu da influência da experiência de 1917 no Brasil. Na maioria dos países, e destacadamente na Europa, os partidos comunistas nasceram da cisão de partidos socialistas já existentes. No caso brasileiro, o partido surgiu da conversão ao socialismo de setores do anarcossindicalismo, que não estavam organizados politicamente, e que sob influência da Revolução Soviética constituíram o Partido Comunista do Brasil em 1922, na época como a Seção Brasileira da Internacional Comunista. Do ponto de vista da evolução política do Brasil, trata-se de feito histórico porque, pela primeira vez, se introduziu a luta política no seio movimento operário recém-constituído no nosso país. Numa realidade marcada pelo capitalismo ainda incipiente, o desenvolvimento do Partido se tornou possível dado o seu enraizamento nos grandes desafios nacionais e sua participação decisiva nas grandes jornadas da vida política nacional desde então.

Do ponto de vista do movimento comunista e das forças socialistas, a Revolução Soviética foi a primeira experiência histórica de tentativa de estruturação de uma alternativa viável ao capitalismo. Isso é o que imprime importância histórico-mundial à revolução. É como disse Álvaro Cunhal: ao invés de o século 20 ser lido como o século do fim do socialismo - e aí é preciso ressaltar que toda leitura tem um conteúdo ideológico e político -, deve ser lido, isto sim, como o século do início das primeiras experiências socialistas e que, justamente por serem as precursoras, tiveram de enfrentar as dores, as limitações e incertezas próprias do nascimento de uma nova forma de vida.

Pensando pelo prisma de um horizonte mais amplo do que o do nosso movimento, o grande legado da Revolução Soviética para a humanidade foi o fato de ter introduzido na agenda mundial a questão social. A Revolução Francesa, por exemplo, deixou como marca a bandeira dos direitos humanos e da cidadania política latu sensu. O grande legado da Revolução Soviética, por sua vez, foi o de ter problematizado a questão da desigualdade no mundo moderno. Isso não apenas por suas realizações diretas, que transformaram as estruturas sociais do antigo Império Russo e promoveram o maior e mais profundo processo de reconfiguração social e de desconcentração de riqueza e de renda da história da humanidade. Há também a afirmação "indireta" da questão social pela experiência soviética, fruto da "ameaça" que o mundo socialista representou para as elites do mundo capitalista e que tornou possível a estruturação de Estados de Bem-Estar e a generalização de direitos sociais na Europa, bem como a sua ampliação nos processos de desenvolvimento dos países capitalistas dependentes. Isso também é uma realização concreta e histórica de profundo significado da Revolução de Outubro.

Um terceiro legado que gostaria de destacar é o fato de a URSS, num primeiro momento, e posteriormente o campo socialista unificarem, em torno de si, forças políticas que desempenharam papel absolutamente determinante nos processos de descolonização que varreram o mundo na segunda metade do século 20. Foi uma conquista civilizacional ampla e profunda que, infelizmente, nem sempre é devidamente valorizada, em função de uma leitura que encara o processo de descolonização como resultado automático e não-conflitivo da opção natural dos povos por sua autodeterminação. A verdade é que, dado o poder das potências coloniais dominantes, não haveria processo de descolonização tão amplo e tão profundo no mundo, caso a luta anti-imperialista não tivesse sido convertida em pilar das políticas externas da União Soviética e dos demais países do antigo campo socialista.

A base para essas políticas de Estado foi a teoria do imperialismo desenvolvida por Lenin, que fincou a luta anti-imperialista como uma segunda grande vertente do movimento revolucionário mundial e que, posta em prática pelo campo socialista, conduziu ao desmantelamento de quase todos os antigos impérios coloniais, deslegitimando a prática colonialista no mundo. Trata-se de uma realização tornada possível em função do apoio político, diplomático, militar e ideológico dado pela URSS e pelos países socialistas à causa anti-imperialista e anticolonialista.

Outro legado fundamental, embora no âmbito de uma coalizão mais ampla, foi a derrota do nazifascismo e seu desmantelamento como força política organizada no mundo e a sua deslegitimação como alternativa de organização econômica, social e política. Mesmo com a coalizão mencionada acima, todos sabem também que a força determinante na derrota do nazifascismo foi a URSS, que perdeu 1/6 de sua população na resistência. Sua atuação mudou o curso da Segunda Guerra Mundial e desarticulou essa forma de autoritarismo extremo dos países capitalistas, outro legado civilizacional para a humanidade. Não se trata de autoemulação nem de autocongratulação, mas qualquer balanço objetivo do legado da Revolução de Outubro não pode abstrair essas realizações históricas concretas.

Viabilidade do socialismo

No entanto, apesar dessas realizações, a URSS foi desmantelada e o antigo bloco socialista se dissolveu. Isso nos coloca, como socialistas e comunistas, um desafio crítico porque o socialismo nasceu como perspectiva emancipatória enraizada nas contradições intrínsecas do modo de produção capitalista e sempre se afirmou como uma alternativa histórica real que não se limitava à crítica romântica dos males do capitalismo. Com essa derrota, o questionamento sobre a viabilidade da construção de uma sociedade alternativa ao capitalismo ganhou força por conta da ofensiva reacionária que tomou o mundo depois da derrocada do campo socialista.

Hoje, não basta criticar as mazelas do capitalismo. É preciso comprovar que o socialismo é viável. E isso exige dos comunistas a atualização e o desenvolvimento da teoria marxista, de maneira que ela dê conta desse desafio. Se isso não for feito, a força de nossas convicções também esmorece e a viabilidade da construção de uma sociedade alternativa aos padrões dominantes no mundo passa a ser limitada.

Há uma saída fácil, porém falsa, para lidar com a derrota do socialismo, que consiste em atribuí-la à não aplicação da teoria marxista. Muitos intelectuais bem intencionados enveredam por esse caminho e ficam procurando olhar para trás e precisar a data exata em que houve a traição que redundou no fracasso. Esta é uma forma de fugir da questão, porque a operação teórica empreendida é a seguinte: o socialismo é a negação do capitalismo, é a sociedade que visa a sua superação. Então, constrói-se um modelo ideal de sociedade socialista como antípoda às mazelas do capitalismo. E se aquele modelo ideal não se realiza, significa que ele foi traído, e ponto. Ou seja, a chave dessa explicação simplista é o abandono ou a traição da teoria marxista. Esta é uma solução fácil, mas utópica, porque não desenvolve a teoria para aprender com as próprias lições da experiência soviética e dos países do bloco socialista. Cabe-nos, também, aprofundar a nossa própria avaliação autocrítica desse tipo explicação.

Programa de emancipação

Marx dizia que, se pudesse resumir o seu projeto de emancipação em uma única frase, essa frase seria "a abolição da propriedade privada". Para refletir mais precisamente o seu conteúdo dialético, poderíamos refrasear a sua formulação como "a superação da propriedade privada". É claro que esta é uma síntese quase caricatural do que seria o projeto de emancipação comunista, mas, como toda caricatura, reúne os seus elementos cruciais e determinantes. Tanto a URSS como as demais experiências socialistas passaram por processos de coletivização do grosso de suas forças produtivas. E construíram, dessa forma, o embrião de sociedades socialistas entendidas como sociedades de transição para a eliminação das diferenças de classe. Eram projetos que realizavam o desenho fundamental do que o próprio Marx colocou como rumo fundamental de uma sociedade socialista.

No entanto, a realização desse programa de emancipação nas condições históricas concretamente enfrentadas pela URSS diferia enormemente das condições previstas no século 19 por Marx e Engels. A visão de superação do capitalismo construída por eles partia da compreensão de que as primeiras experiências de superação do capitalismo se originariam nos países capitalistas mais desenvolvidos. Isso porque, sendo mais desenvolvidos, a produção fabril desses países estaria mais concentrada e a contradição entre propriedade privada dos meios de produção e natureza social da produção e entre o Capital e o Trabalho estariam mais intensificadas, gerando, portanto, condições mais maduras para efetuar a transição socialista.

Nas condições históricas concretas geradas mundialmente pelo advento do imperialismo, no entanto, a possibilidade primeira de superação do capitalismo surgiu na periferia e não no coração do sistema. Essa era a condição do Império Russo, caracterizado por vários autores da época, inclusive Lenin, como sendo uma espécie de ponte entre o Ocidente e o Oriente, porque conjugava, nas últimas décadas do século 19, um capitalismo bastante concentrado e de desenvolvimento tardio nas cidades, com uma massa de população na área rural, onde predominavam relações pré-capitalistas. Além disso, havia o agravante de que o Império Russo era institucionalmente débil, pois nunca chegou a se consolidar como Estado unificado e centralizado.

Esse era o contexto histórico em que se tomou, pela primeira vez no mundo, o poder de forma duradoura para tentar promover a superação do modo de produção capitalista. Havia, portanto, os elementos do atraso, da semiperiferia, do Estado pouco consolidado, do contexto geopolítico adverso - o cerco capitalista -, da ameaça permanente de invasão e da guerra civil. Do ponto de vista econômico, a ausência de experiências socialistas em países mais avançados, somada a esse cenário adverso, resultou no dilema de ter que se combinar a construção do socialismo com a superação acelerada do atraso herdado da condição semiperiférica anterior.

O dilema do desenvolvimento

Historicamente, esse desafio foi enfrentado, de maneira vitoriosa, pela implantação de uma economia altamente centralizada, com estatização quase completa das forças produtivas. Processou-se, ainda, a fusão entre partido e Estado, com a estrutura hierárquica do partido tendo uma função de mobilização centralizada da sociedade, para que fosse possível enfrentar os desafios da industrialização, que eram também desafios de sobrevivência do Estado soviético. Aliás, se não houvesse todo aquele esforço extremamente custoso de industrialização acelerada dos anos 30, não haveria base econômica para ser convertida à indústria de defesa, que, em última instância, foi a força determinante - evidentemente junto com o heroísmo dos povos soviéticos - para a derrota do nazifascismo na Segunda Guerra Mundial.

O dilema que se apresentou é que, uma vez superado o desafio de industrialização e da montagem de uma economia medianamente integrada, aquele desenho - composto por mecanismos de estatização integral das forças produtivas, pela direção centralizada e pela planificação detalhada das metas de produção - começou a perder capacidade de manter a dinâmica de desenvolvimento e elevação contínua da produtividade na economia soviética.

O principal problema era justamente a impossibilidade de sustentação dessa direção centralizada da economia, via comando e mobilização, em uma sociedade cada vez mais heterogênea e complexa, e a inexistência de um mecanismo econômico que, no contexto do socialismo, induzisse à contínua inovação e à contínua elevação da produtividade nas empresas já constituídas. Não se trata, porém, de um dilema exclusivo do socialismo. De certa maneira, o Brasil de hoje também enfrenta dilema semelhante. Como superar o fosso entre a capacidade de pesquisa científica e tecnológica existente em unidades de pesquisa, universidades e institutos, e a rápida incorporação do conhecimento gerado à inovação das empresas?

Trata-se de um dilema mais amplo do desenvolvimento, mas que se expressou de maneira muito forte na experiência soviética e que chamo de "dilema da produtividade" ou "da inovação". O capitalismo tem mecanismos indutores dessa inovação radicados na própria anarquia da produção que caracteriza o sistema e que induzem a chamada "destruição criadora", destacada por Joseph Schumpeter. Para enfrentar a concorrência e sobreviver, as empresas são levadas a tentar incorporar rapidamente novas tecnologias, apesar do elevado custo social que resulta disso. Faltou à URSS estruturar um mecanismo econômico indutor de inovação análogo nas condições do socialismo, uma vez ultrapassada a fase inicial de superação do atraso herdado dos tempos do Império.

Trata-se de dilema crucial para as sociedades socialistas e por isso devemos valorizar enormemente as lições das experiências chinesa e vietnamita nesse terreno. Estas experiências construíram uma alternativa a esse problema que conjuga variadas formas de propriedade, mantendo elementos de concorrência entre elas, mas com predomínio de formas sociais e coletivas de propriedade e com um plano de orientação do desenvolvimento feito pelo Estado. O mínimo que se pode dizer é que esse desenho conseguiu superar um entrave que foi fatal na construção econômica da experiência soviética e do modelo que foi exportado a partir dela para os demais países do campo socialista.

Doutrinação do marxismo

Aqui, destaco outro equívoco oriundo da transformação do marxismo em doutrina de Estado: a exportação do modelo soviético, gerado para responder a condições históricas muito específicas, como modelo único de socialismo. A sua não aceitação foi muitas vezes encarada como traição ou como abandono do socialismo. A imposição de um modelo único de socialismo é fruto desse embotamento da teoria marxista transformada em doutrina de Estado. Grosso modo, ocorreu com a teoria de Marx um processo análogo ao que acometera, anteriormente, a teoria de Hegel. O próprio Marx destacava que, no pensamento hegeliano, o elemento dialético era eminentemente revolucionário. No entanto, ao ser fechado como sistema filosófico e ao ser transformado em doutrina de Estado na Prússia, houve um estrangulamento sistêmico do elemento revolucionário de sua filosofia. De certa maneira, a transformação do marxismo em doutrina de Estado tolheu a natureza dialética e revolucionária da própria teoria marxista, tornando-a incapaz de teorizar, de enfrentar e de refletir sobre os novos problemas gerados pela própria experiência da construção do socialismo.

Há, portanto, uma combinação de fatores para a qual chamo atenção: o legado das condições históricas vividas pela primeira experiência socialista no mundo com os problemas universais do próprio projeto de emancipação socialista - porque esse dilema da produtividade é de validade e repercussão mais amplas do que as condições históricas específicas da revolução soviética. A grande referência política para a construção institucional do Estado socialista, assumido pelo próprio Marx no século 19, foi a Comuna de Paris, uma experiência efêmera no contexto de uma cidade sitiada. Mas essa experiência serviu de referência para as reflexões de Marx sobre a institucionalidade de um Estado de base operário-popular, retomadas em seguida por Lenin ao escrever O Estado e a revolução

As formas da democracia socialista

As lições extraídas por Marx da experiência da Comuna de Paris apontam para a generalização de formas de democracia direta e participativa. Como sabemos, não foi exatamente o que se consolidou como forma dominante de Estado na URSS. Mas, ao invés de ler isso simplesmente pela chave da traição, acho que era importante examinar a questão sob a chave dos dilemas históricos da construção do Estado soviético. A verdade é que se tentou, inicialmente, construir o poder soviético nos moldes destacados originalmente por Marx no seu estudo da experiência da Comuna de Paris.

No contexto histórico concreto enfrentado pela Revolução Soviética - em particular guerra civil, cerco, invasão e ameaças geopolíticas continuadas -, aqueles mecanismos de democracia direta e participativa se mostraram incapazes de promover a mobilização de forças necessária para o triunfo na guerra civil e a derrota das tropas invasoras. Mas os mecanismos de democracia direta e participativa no poder soviético nunca chegaram a ser dissolvidos. Todos aqueles mecanismos - mandato imperativo, revogação de mandatos, etc. - foram preservados na experiência soviética. Só que, na mobilização concreta da luta pela sobrevivência do Estado soviético, a realidade da luta política levou crescentemente o partido a assumir a função de mobilização centralizada da luta de resistência. E o que se observou foi, apesar da preservação de formas comunais no poder soviético, a crescente fusão do partido bolchevique com as estruturas do Estado e a própria estrutura vertical-hierárquica do partido se sobrepondo aos mecanismos de controle democrático, previstos na constituição dos poderes soviéticos.

Parte da explicação para essa evolução nos remete, uma vez mais, para as circunstâncias históricas que marcaram a origem da URSS: a debilidade da própria consolidação do Estado no antigo Império Russo, a rapidez do seu colapso e depois a brevíssima experiência liberal. Mas há reflexões mais amplas a serem extraídas dessa evolução - a saber, a concepção altamente fechada, não subordinada ao controle popular, dirigista e burocratizada que o Estado assumiu -, que nos remetem a dilemas e tensões do próprio projeto socialista.

Se recuperarmos a visão que Marx esboçou na "Crítica ao Programa de Gotha", do socialismo como etapa de transição prolongada, podemos encaixar melhor a noção de variedade de formas de propriedade no âmbito da transição prolongada e o próprio princípio distribuidor da riqueza no socialismo, que é: "de cada um de acordo com suas capacidades e a cada um de acordo com o seu trabalho". Quer dizer, a medida é o trabalho, o que pressupõe, ainda, a predominância de relações de alienação na sociedade de transição, já que as pessoas continuam a ser motivadas para o trabalho não tanto pela sua contribuição criativa ao bem-estar da humanidade e sim pela ampliação do acesso a fundos de consumo. E isso implica o predomínio de visões particularistas durante um prolongado período da transição.

Portanto, ao generalizar os mecanismos de democracia direta e participativa, como Marx pensava ser possível pela leitura da experiência da Comuna de Paris, pode-se gerar, na verdade, a multiplicação de corporativismos particularistas e a paralisia do projeto de desenvolvimento mais amplo da sociedade socialista. Acredito que aqui há um problema que repõe o imperativo da construção da democracia representativa no socialismo. Ao longo da transição, creio que será necessário preservar mecanismos de democracia representativa como alicerces centrais do Estado para construir o interesse coletivo democraticamente. Porque a alternativa a isso, historicamente, foi o partido de vanguarda, que, por ser possuidor da teoria mais avançada, era reconhecido como dirigente da sociedade e do Estado. Mas, se é isso, onde ficam os controles democráticos? Até que ponto a estrutura hierárquica do partido não se sobrepõe aos controles democráticos na transição socialista? Este é um problema de fundo, que nos remete à necessidade de conceber o Estado socialista como um Estado socialista de direito.

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Luis Fernandes é cientista político, professor do Instituto de Relações Internacionais da PUC-Rio, da Universidade Federal do Rio de Janeiro e atual presidente da Financiadora de Estudos e Projetos - Finep, do Ministério da Ciência e Tecnologia.



Fonte: Especial para Gramsci e o Brasil.

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