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Partido e expressão da vontade coletiva

Dênis de Moraes - 2000
 

O partido revolucionário moderno, na visão de Antonio Gramsci, é o centro de uma ampla rede de instituições sociais e políticas que compõem a sociedade civil. No interior dessa rede, entram em cena forças sociais -- uma classe e seus aliados. Gramsci designa o partido com o nome de "moderno Príncipe", o agente da vontade coletiva transformadora (1). Sua tarefa fundamental consiste em superar os resíduos corporativos (que o pensador italiano define como "egoístico-passionais") da classe operária e contribuir para a formação de uma vontade coletiva nacional-popular. Enquanto organismo de mediação e de síntese, deve assumir iniciativas políticas que englobem a totalidade dos estratos sociais e vigorem sobre a universalidade diferenciada do conjunto das relações sociais.

O que é a vontade coletiva? Gramsci concebe-a como "consciência operosa da necessidade histórica", ou seja, a necessidade elevada à consciência e convertida em práxis transformadora. Como a vontade coletiva só pode ser desenvolvida quando existem condições objetivas, o partido tem que realizar "uma análise histórica (econômica) da estrutura social do país dado", para elaborar uma linha política capaz de incidir efetivamente sobre a realidade (2).

A construção homogênea da vontade coletiva -- indispensável à constituição de um bloco histórico revolucionário -- depende da capacidade dos dirigentes de dar aos movimentos espontâneos uma orientação político-intelectual consciente, que se traduza numa ação eficaz e duradoura (3). Importante: Gramsci descrê de uma vontade coletiva suscitada "pelo alto", como ato arbitrário. Os "sentimentos espontâneos das massas" devem ser educados, purificados, orientados, mas nunca ignorados. Afirma ele: "Essa unidade da ´espontaneidade` com a ´direção consciente` (ou seja, com a ´disciplina`) é precisamente a ação política real das classes subalternas, enquanto política de massa e não simples aventura de grupos que dizem representar as massas" (4). O partido, portanto, deve realizar uma síntese disciplinadora e uma mediação político-universal.

A crítica à manipulação das massas fica evidente quando Gramsci analisa dois exemplos de partido "que parecem fazer abstração da ação política imediata". O primeiro é aquele constituído por uma "elite de homens de cultura, que tem a função de dirigir sob o ponto de vista da cultura, da ideologia geral, um grande movimento de partidos afins (que são na realidade frações de um mesmo partido orgânico)". O segundo, almejando galvanizar as massas, "não tem outra função política senão a de uma fidelidade genérica, de tipo militar, a um centro político visível ou invisível". Muitas vezes o centro visível "é o mecanismo de comando de forças que não desejam mostrar-se em plena luz, mas agir apenas indiretamente por pessoa interposta ou por ´ideologia interposta`" (5).

Gramsci condena a variante sectária segundo a qual o povo é simplesmente uma "massa de manobra... ocupada com prédicas morais, com tiradas sentimentais, com mitos messiânicos de espera de idades fabulosas, em que todas as presentes contradições e misérias serão automaticamente resolvidas e sanadas". Descartando o consenso fabricado, Gramsci indica que o autêntico organismo de massas tem que tomar em conta os anseios dos grupos sociais de que a sua linha programática é expressão (6). A vontade coletiva relaciona-se organicamente à reforma intelectual e moral. O partido não luta apenas por uma renovação política, econômica e social, mas também por uma revolução cultural. Na batalha pela conquista da hegemonia e da direção político-ideológica, a frente cultural ocupa lugar decisivo. É o terreno no qual o "moderno Príncipe", lutando pela difusão de uma cultura nacional-popular, "estará criando as condições para a hegemonia das classes subalternas, para sua vitória na ´guerra de posições` pelo socialismo" (7).

Os intelectuais assumem o protagonismo na articulação do partido revolucionário que empreenderá a reforma intelectual e moral. Gramsci entende que todos os membros de uma agremiação devem ser considerados intelectuais, não pelo seu nível de erudição, mas pelas funções que exercem. Para ele, existem dois tipos de intelectual: o "intelectual orgânico", que, em sintonia com a emergência de uma classe social determinante no modo de produção econômico, procura dar coesão e consciência a essa classe, também nos planos político e social; e o "intelectual tradicional", que se conserva relativamente autônomo e independente, mesmo tendo desaparecido a classe à que pertencia no passado. Ambos cumprem funções análogas às do partido: buscam dar forma homogênea à consciência da classe a que estão ligados ou, no caso dos intelectuais tradicionais, às classes a que emprestam sua adesão, e desse modo preparam a hegemonia sobre o conjunto de seus aliados. São, em suma, instrumentos da consolidação de uma vontade coletiva, de um bloco histórico (8).

Embora enquadrasse o partido revolucionário como vanguarda da classe operária -- um todo estruturado que estabelece princípios, procedimentos e disciplinas --, Gramsci não deixava de advertir para o risco de o centralismo perder o caráter democrático, cedendo à tentação de se burocratizar e impor práticas autoritárias. A seu juízo, o partido só consegue traduzir, democraticamente, a vontade coletiva quando: assegura permanente circulação de idéias entre seus militantes; a sua função não é regressiva e repressiva, mas progressista, voltada à elevação do nível ideológico das "massas atrasadas"; não é um "mero executante", e sim "um deliberador" (9).

O genuíno centralismo democrático é um centralismo em movimento, que nas palavras de Gramsci significa "uma contínua adequação da organização ao movimento real, uma capacidade de temperar os impulsos da base com o comando do alto, uma inserção contínua dos elementos que desabrocham do mais profundo das massas no quadro sólido do aparato da direção que assegura a continuidade e a acumulação regular das experiências" (10).

O partido emerge, pois, como uma instância reguladora, um elemento de estabilidade para a hegemonia não do núcleo dirigente central, mas das forças que se vinculam às bases e aos grupos afins e aliados. Gramsci salienta que, se se invalidam tais requisitos em nome do centralismo burocrático, o partido se confunde tecnicamente com um "órgão de polícia", porque baseia as suas deliberações em "critérios discriminantes" (11).

O mundo no qual vivia Gramsci apontava dois prováveis alvos para a sua crítica. Em primeiro lugar, a experiência do Partido Nacional Fascista, em franca ascensão; e os apelos autoritários que já contagiavam o Partido Comunista da União Soviética, após os expurgos promovidos por Stalin entre 1927 e 1929. O PCUS evidenciava traços rejeitados por Gramsci, como a rígida identificação entre partido e Estado. Stalin sempre defendeu um partido monolítico. No II Congresso do Partido Operário Social-Democrata da Rússia, em 1903, opôs-se à moção de Martov que considerava membros da organização também os que, embora aceitando o seu programa, não se filiassem a uma de suas células. Para Stalin, isto equivalia a "uma profanação do sancta santorum". A seu ver, o partido deveria ser construído como "uma fortaleza", cujas portas se abririam aos que "dele são dignos" e aos que "são provados". Em outros termos, reservava-se o acesso aos guardiães da fé, que poliam a unidade programática, organizativa e tática (12).

A fulminante escalada de Stalin para ditador é contemporânea da cristalização do partido como intérprete presumido da vontade coletiva. Os teóricos do Kremlin invocavam os princípios do dirigismo e do centralismo partidários introduzidos por Lenin no Que fazer?, de 1903. A lealdade incondicional à organização e a verticalidade decisória, defendidas por Lenin, encaixavam-se como uma luva nos propósitos totalitários de Stalin. Os ideólogos oficiais omitiam, porém, que as teses leninistas haviam sido escritas na clandestinidade, em plena agitação revolucionária, quando a vida partidária estava sujeita a uma hierarquia ortodoxa e a estruturas militarizadas. Que fazer? mencionava dois pontos obscurecidos pelo stalinismo: o partido se curvaria ao programa consensual e a filiação seria um ato voluntário (13).

Stalin sacramentou o marxismo-leninismo como "teoria social" habilitada a equacionar os "problemas prementes das massas". Competia ao poder dirigente viabilizar a sua execução, conforme escreveu o chefe soviético em 1938: "O partido do proletariado deve apoiar-se numa teoria social, numa idéia social que traduza completamente as necessidades do desenvolvimento da vida material da sociedade e seja capaz de pôr em movimento as grandes massas populares, capaz de as mobilizar e de as organizar no grande exército do partido do proletariado, pronto para varrer as forças reacionárias e abrir caminho às forças avançadas da sociedade (14)." Para Stalin, "a direção leninista consiste precisamente em que a vanguarda saiba arrastar atrás de si as grandes massas, marchando para frente sem delas se separar." Invertem-se os papéis: as "forças avançadas da sociedade" devem caminhar a reboque do estado-maior partidário (15).

Slavoj Zizek sustenta que a lógica do partido stalinista aparece como "encarnação imediata da universalidade das massas ou da classe operária". O partido projeta-se como emblema da linha geral. No curto-circuito entre o universal (a massa, a classe) e o particular (a agremiação partidária), estabelece-se uma relação não-dialética entre partido e massa. O fetiche do partido universal, "força de impacto da classe operária", desconsidera a contradição entre a exigência de a organização estar aberta e atrelada às massas, e o fato de concentrar em si o poder (16). Tanto que Stalin não cansava de alardear a onipotência do PCUS: "Não existe e nunca existiu no mundo um poder tão poderoso e com tamanha autoridade quanto o nosso, quanto o poder dos soviéticos. Não existe e nunca existiu no mundo um partido tão poderoso e com tamanha autoridade quanto o nosso, quanto o Partido Comunista" (17).

Com efeito, o centralismo burocrático visa a uma forte integração ideológica com as massas e os filiados. Nesse sentido, não pode prescindir de modalidades de propaganda que induzam à aclamação de suas diretrizes, ao máximo de concordâncias acerca das pontuações políticas. Não foi por outra razão que Stalin recomendou, como "condição decisiva" para o êxito do partido, estratégias de comunicação que convencessem as massas "do acerto das indicações, diretivas e palavras de ordem de vanguarda" (18). Simultaneamente, o simulacro do partido único tem que dissimular os meios repressivos empregados para a formação da "opinião consensual". As classes populares não podem perceber que a força real deste tipo de dispositivo político-partidário brota do esvaziamento das possibilidades expressivas do outro, a partir da neutralização das críticas dentro do pensamento de bloco. Infunde-se a crença de que a agremiação armazena dentro de si todos os postulados para a elevação da dignidade humana. Por isso, estaria autorizada a agir sem consulta prévia às vontades autênticas. Os sujeitos já encontram preestabelecidas as formas de ação e de cooperação supostamente compatíveis com os interesses coletivos.

De acordo com a bula stalinista, o monopólio da vontade geral exprime-se por princípios "objetivos" e "racionais" que assegurem ao partido o privilégio de julgar "cientificamente" o que é "a realidade objetiva dos fatos" e sobre ela fazer incidir as intervenções ideológicas de coesão. Exatamente como apregoava Andrei Jdanov, um dos ideólogos do Comitê Central do PCUS no apogeu do stalinismo, mais tarde censor da literatura e das artes: "Possuímos uma arma segura para superar todas as dificuldades. Essa arma é a doutrina grandiosa e invencível de Marx, Engels, Lenin e Stalin, que encarna a vida de nosso partido" (19). As vozes que porventura questionem as "leis objetivas" sancionadas pela cúpula partidária são estigmatizadas como desviantes ou heréticas. Elas se apoiariam em conhecimentos subjetivos e metafísicos, cujo pecado capital residiria no fato de negar ao "saber objetivo" a prerrogativa de simbolizar o desenvolvimento da vontade coletiva.

Na verdade, essa aparência de vontade geral obedece a fórmulas argumentativas que transferem para a gestão partidária as cordas que modulam os desejos das massas. O partido visualiza-se como sociedade institucionalizada, que paira sobre as cabeças feito uma nebulosa, coibindo desígnios simbólicos que colidam com os do aparelho central.

Não nos propomos aqui examinar as íntimas conexões entre tal concepção fetichista e ultradogmática de partido e o sistema de poder que levou à ruína o chamado "socialismo real" no Leste europeu. Mas fixemos alguns de seus funestos subprodutos: o controle absoluto das instâncias partidárias pelo mandarinato burocrático; o culto à personalidade dos líderes; a vigilância totalitária; os crimes e expurgos; a coerção ideológica sobre a produção estética e intelectual.

Nunca é demais insistir no caráter premonitório da advertência de Gramsci sobre a possibilidade de se desfigurar a vontade política geral. Ele anteviu, no fenômeno do "partido único e totalitário de governo", a sombria perspectiva de a organização assumir funções políticas "determinantemente negativas", como as "de policiamento, de influxo moral e cultural". A cúpula dirigente envereda por uma espécie de "conluio estreito que tende a perpetuar os seus mesquinhos privilégios, regulando ou sufocando o nascimentos de forças contrastantes". Nos congêneres do PCUS, o nome de partido político não passava, para o teórico italiano, de "uma pura metáfora de caráter mitológico" (20).

Gramsci demarca o sentido legítimo e democrático da vontade coletiva, enquanto necessidade histórica elevada à consciência e convertida em práxis transformadora. Significa, ao mesmo tempo, distinguir o partido revolucionário como eixo dinâmico da práxis transformadora. Cabe-lhe operar uma complexa teia de iniciativas políticas que não apenas reflitam a universalidade diferenciada das relações sociais, como favoreçam a conquista permanente e cumulativa de espaços no interior da esfera pública, de modo a inverter, progressivamente, a correlação de forças, projetando o conjunto dos trabalhadores como classe hegemônica.

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Dênis de Moraes é professor da Universidade Federal Fluminense e autor, entre outros livros, de biografias de Graciliano Ramos e Henfil.

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Notas

(1) Carlos Nelson Coutinho -- a quem devemos contribuição altamente significativa na difusão das idéias de Gramsci no Brasil -- observa que "o vínculo de dependência entre as formulações gramscianas sobre o ´moderno Príncipe` e a teoria do partido em Lenin é bastante evidente". Segundo ele, talvez seja esse um dos tópicos concretos da teoria política onde, "apesar de importantes diferenças de ênfase, é menos marcada a capacidade renovadora de Gramsci em relação à herança leninista". Um dos pontos de continuidade entre Gramsci e Lenin é a própria função que ambos atribuem ao partido como vanguarda da classe operária para a revolução socialista. Ver Carlos Nelson Coutinho. Gramsci. Porto Alegre: L&PM, 1981, p. 117-8.

(2) Id., ib., p. 120.

(3) Id., ib., p. 121.

(4) Antonio Gramsci. Obras escolhidas. São Paulo: Martins Fontes, 1978, p. 173-5.

(5) Id., ib., p. 168-9.

(6) Id., ib., p. 123.

(7) Carlos Nelson Coutinho, ob. cit., p. 122.

(8) Id., ib., p. 123.

(9) Id., ib., p. 125.

(10) Antonio Gramsci, ob. cit., p. 221.

(11) Id., ib., p. 173.

(12) Ver Valentino Gerratana. "Stalin, Lenin e o marxismo-leninismo". In Eric J. Hobsbawn (org.). História do marxismo -- O marxismo na época da Terceira Internacional: problemas da cultura e da ideologia, (vol. 9). Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1987, p. 232-6. Segundo Gerratana, a necessidade de unidade programática nada mais era do que um estratagema retórico de Stalin. A noção do "partido-fortaleza" se legitimaria como dedução lógica das posições de Lenin sobre a organização do partido único, expressas no Que fazer?. De fato, a férrea disciplina interna e o centralismo pregados por Lenin favoreceram as exacerbações grosseiras do stalinismo.

(13) Ver Vittorio Strada. "Da ´revolução cultural` ao ´realismo socialista`". In Eric J. Hobsbawn, ob. cit., p. 139-40.

(14) Josef Stalin. Materialismo dialético e materialismo histórico. São Paulo: Global, 1978, p. 32.

(15) Stalin, citado por Edgard Carone. O PCB (1943-1964). São Paulo: Difel, 1982, p. 32.

(16) Slavoj Zizek. Eles não sabem o que fazem: o sublime objeto da ideologia. Rio de Janeiro: Zahar, 1992, p. 81-2.

(17) Stalin, citado por Slavoj Zizek, ob. cit., p. 82.

(18) Stalin, citado por Edgard Carone, ob. cit., p. 104.

(19) Andrei Jdanov, citado por Para Todos, nº 3, abril de 1950.

(20) Antonio Gramsci, ob. cit., p. 168-9, 173, 221-2.



Fonte: Especial para Gramsci e o Brasil.

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